| CRÍTICAS | Mudo

Estranha carreira a de Duncan Jones até ao momento. Depois de uma estreia extremamente interessante, com o kubrickiano Moon – O Outro Lado da Lua (havia ali algo de 2001: Odisseia no Espaço), seguiu-se um também simpático O Código Base, que o levou directamente para os grandes estúdios. Aí, foi engolido, regurgitado e cuspido fora por Hollywood, depois do desastre de Warcraft – O Primeiro Encontro de Dois Mundos (que não é assim tão mau quanto isso). E agora o Netflix dá-lhe a mão, para Mudo, o projecto que Jones garante ter em carteira desde o início e que só não foi o seu primeiro trabalho porque exigia um orçamento maior.

Duncan Jones descreveu Mudo como uma sequela espiritual de Moon – O Outro Lado da Lua e no fim dedicou-o à memória do seu pai, David Bowie, e da sua ama. Estamos no futuro novamente (a ficção-científica continua a ser a base de trabalho de Jones, uma espécie de maluquinho do género), numa distopia muito semelhante à de Blade Runner – Perigo Iminente, em que a cidade se enche de neons, anúncios luminosos e caos. Estamos na Alemanha, mas podia ser noutro ponto qualquer do planeta, tal é o nível de indiferenciação, nesta acidade (assim mesmo, com um a antes, para a identificar como incompleta e inorgânica (e amoral)). É a globalização elevada ao expoente máximo da normatização da cidade, com todos os malefícios que isso comporta (o crime, a corrupção, o tráfico…).

É neste submundo que se desenrola Mudo. Leo (Alexander Skarsgård) é um amish que ficou mudo depois de um acidente em criança e da mãe se recusar a autorizar a operação por ir contra as suas crenças. Leo é um corpo estranho naquele mundo tomado de assalto pelas máquinas e pelos aparelhos, uma vez que se recusa a utilizar qualquer tecnologia. Apesar disso, trabalha num estabelecimento de diversão nocturna como barman e anda a sair com uma das empregadas de lá, Naadirah (Seyneb Saleh). E mesmo sem falar e sendo info-excluído, Leo vai encetar uma demanda sem olhar a meios para encontrar a sua amada, quando esta desaparece sob estranhas circunstâncias.

Tal como Blade Runner – Perigo Iminente, Mudo é também um neo-noir retro-futurista, com todos os elementos do género. Não é por acaso que estamos sempre a ver um poster de O Anjo Azul. É certo que não há narrador, porque o herói é… mudo, mas há femme fatales, gangsters por todo o lado, é sempre noite e há uma jovem desaparecida. O que ninguém esperava é que Duncan Jones enfiasse neste modelo uma história secundária, que tem como protagonistas Paul Rudd (mas quem é que se lembrou de começar a teimar em tentar fazer dele um actor a sério?) e Justin Theroux, dois cirurgiões que trabalham para os criminosos a torturar as suas vítimas ou a sarar os seus capangas baleados.

Apesar de ambas as histórias se desenrolarem no mesmo ambiente, as duas pertencem a filmes totalmente distintos. A de Leo é um thriller silencioso, quase atmosférico (podia referir aqui toda aquela tradição de heróis silenciosos e com cara de quem está com dor de barriga que vem desde O Ofício de Matar, de Melville, mas isso seria já esticar demasiado a comparação), enquanto que os cirurgiões são personagens quase tarantinescas, com a sua violência estilizada e muito comic relief.

É essa a sensação que fica de Mudo, a de que é uma amálgama de várias ideias que nunca cosem realmente uma com a outra. São dois filmes de registos e tons diferentes que se vão cruzando e que só aí encontram pontos em comum; é um filme ambientado num contexto futurista muito interessante (há ainda ecos políticos de uma guerra que envolve alemães e norte-americanos, mas que se ouvem apenas como vozes distantes), mas que não tira nenhum proveito disso e que tanto se passa aí como poderia ter-se passado na França dos anos 60 (outra vez a referência a Melville) ou nos Estados Unidos da actualidade (viram Actos de Vingança, o filme de vingança em que Antonio Banderas também não fala?); e é um filme que demora demasiado tempo para dizer qualquer coisa, acabando por perder a nossa atenção ao longo de tanta inconsequência.

Tal como a distopia de Mudo é uma acidade descaracterizada, também o próprio filme é uma espécie de acinema, assim mesmo, com um a antes, para referir que é incompleto e inorgânico. Perceberam a comparação e a referência? Se não perceberam releiam o segundo parágrafo. Caso contrário passem directamente para a frase seguinte, que remata toda esta prosa. Mudo é um desolador Double Cheeseburger, que não faz esquecer o Duncan Jones inicial.Título: Mute
Realizador: Duncan Jones
Ano: 2018

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