| CRÍTICAS | Atlantique

Aquilo a que se convencionou chamar de “crise dos refugiados” e o drama da rota da emigração do Mediterrâneo tem tido algum eco no cinema dos últimos tempos, especialmente no documentário e naqueles filmes tipo casos da vida. No entanto, tal como nas histórias na comunicação social, há sempre um outro lado que fica esquecido: o dos que ficam.

Atlantique dá voz a esses – familiares, amigos, namorados… – que ficam em terra, enquanto alguns vão tentar a sua sorte no mar. As suas vidas ficam também em suspenso, sem saberem se a viagem irá ter êxito sequer, quanto mais a vida na Europa. Por isso, Atlantique será também um filme de zombies, quando já perto do final abraça o realismo mágico (entre Mia Couto e Apichatpong Weerasethakul) e os zombies de Jacques Tourneur.

Em Atlantique quem fica é Ada (Mame Bineta Sane), uma jovem de Dakar que vê o namorado e os amigos partirem sem aviso num barco rumo a Espanha. Enquanto aguarda pelas notícias (boas ou más) que nunca mais chegam, Ada vê-se duplamente prisioneira: presa a Dakar sem perspectivas futuras de felicidade ou de sucesso; e presa a um casamento combinado com um ricaço mimado, que agrada mais à sua família do que a ela própria.

O filme aborda ainda estas questões sociais, culturais e religiosas da cultura senegalesa, sempre visto por dentro e recusando qualquer olhar exterior, condescendente ou sensacionalista. Para isso contribui o facto de Mati Diop, a realizadora, ser francesa de origem senegalesa. Contudo, não deixa de ser curioso que Atlantique seja quase um filme de inspiração europeia, muito contemplativo e reflexivo (Antonioni anda por aqui com o seu cinema de alheamento), que estende o tempo e se deixa levar, às vezes até demasiado.

Atlantique tem assim sempre uma aura fantasmática, que tanto fala de mortos-vivos como de espectros. É que os primeiros são também um símbolo de um mal-estar perante a corrupção, a falta de oportunidades e a estigmatização (e superstição) da sociedade religiosa do Senegal; e os segundos são cadáveres que passaram a ter uma vida póstuma, esvaziada de qualquer significado, como aqueles que ficam eternamente à espera. Por isso, Atlantique é uma proposta ímpar e curiosa, nem sempre feliz na concretização, mas sempre intrigante. Assim como o é a sua própria existência, ao ser integrada na grelha de uma Netflix cada vez mais esquizofrénica, na oferta de conteúdos para encher o seu catálogo. É um Double Cheeseburger, mas com um sabor diferente a outros Double Cheeseburgers.

Título: Atlantique
Realizador: Mati Diop
Ano: 2019

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