Ouvi falar sobre o Honeyland pela primeira vez no texto da Sara Galvão sobre os seus melhores filmes do ano. E, de repente, estava em todo o lado: nas listas de gente respeitável, em artigos, em antecipações para 2020… E todas as referências vinham acompanhadas dos mais rasgados elogios.
A sinopse não era, no entanto, auspiciosa. Honeyland é um documentário sobre a última apicultora da Macedónia (país que os mais informados reconhecem da Jugoslávia e das disputas pelo nome com a Grécia; e que os menos informados (e os tios) aproveitam logo para fazer piadas com o prato de legumes). Juro por Deus, se vir mais alguém a partilhar artigos sobre as abelhas terem sido eleitas o mais importante animal do mundo(!) ou citações do Einstein sobre elas(!!) irei partir para a violência! Por isso, não estava muito inclinado para ir ver Honeyland. Mas pronto, lá respirei fundo e vamos lá a isso.
Afinal de contas, Honeyland não tem nada a ver com abelhas. Quer dizer, até tem, porque Hatidze é apicultora. Mas Honeyland é sobre esta mulher, que vive numa casa de pedra numa aldeia deserta no meio de nenhures (mesmo que fosse em Skopje já era no meio de nenhures, quanto mais numa aldeia abandonada na Macedónia…), juntamente com a mãe acamada e sem um olho, tratando de uma pequena colmeia e indo vender o mel à cidade de quando em vez (e comprando tinta para pintar o cabelo, porque uma mulher também gosta de se arranjar, não é?, mesmo que viva sozinha onde Judas perdeu as botas.
Entretanto chega a aldeia uma família que parece que vai ali passar o verão (o inverno é frio para cacete), com o seu exército de 1762 filhos. De repente, instala-se na aldeia abandonada um ambiente de Kusturica, mas sem o cigano-chique deste. Honeyland é mesmo real deal! Toda aquela gente grita muito, briga, andam por ali a tomar conta do gado, no meio do nada. E, apesar de tudo, Honeyland não é um filme miserabilista, até porque podia cair facilmente nessa tentação. Os realizadores Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov passaram três anos(!) a fazer o filme e tornaram-se uma mosca na parede, tornaram-se parte da paisagem e evitam qualquer atitude mais voyerrista ou exploradora de qualquer forma. Os dois estão naquela aldeia e na vida de Hatidze da mesma forma que Pedro Costa está no bairro das Fontainha e na vida da Vitalina Varela ou do Ventura.
A referência a Pedro Costa não é por acaso. É que as cenas de interior, no quarto da casa de pedra de Hatidze, com a mãe na cama, a comer ou a queixar-se, com a luz recortada pela luz da vela ou da única janela da divisão, fazem tanto lembrar No Quarto de Vanda. Tal como esse, também Honeyland mistura a vida real com a ficção do cinema de uma forma em que os limites de um e de outro se desvanecem.
Depois os vizinhos de Hatidze decidem comprar colmeias também e a sua ganância, aliada à falta de jeito, leva ao descalabro total daquele frágil microuniverso. À tragédia alia-se a parábola capitalista e, claro, a ambiental (é impossível sendo um filme com abelhas, não é?). De repente, a morte apodera-se de Honeyland e ninguém sai ileso, incluindo nós próprios. Um épico poderoso em apenas hora e meia, que filtra 500 horas de filmagens num concentrado que faz um arco narrativo perfeito, daquelas histórias que contadas ninguém acredita.
Título: Honeyland
Realizador: Tamara Kotevska & Ljubomir Stefanov
Ano: 2019