| CRÍTICAS | Na Sombra da Lei

Ser polícia nos filmes de hoje é diferente do que ser polícia nos filmes dos anos 80. Mel Gibson que o diga. Em Na Sombra da Lei usou apenas um bocadinho de força a mais ao deter um traficante de droga e acabou logo suspenso, quando um vídeo amador que alguém que registou anonimamente com o telemóvel foi parar, primeiro, à internet e, segundo, às televisões da América. Nos seus tempos de action hero, em filmes como Arma Mortífera, Mel Gibson não só tinha mais liberdade para adoptar métodos pouco ortodoxos, como até era incentivado pelo público.

Por isso, Mel Gibson e o parceiro, Vince Vaughn, dizem coisas como os boomers que lemos nas caixas de comentários da internet, como “isto agora é tudo racismo”, “o politicamente correcto está a dar cabo disto tudo” ou “marxismo cultural rebebéu pardais ao ninho”. O que, tendo em conta algumas ideias públicas de Vaughn sobre o porte de armas ou os rants anti-semitas de Gibson, até é bem capaz de ser uma meta-referência mais inteligente do que pensamos.

Na Sombra da Lei é um filme que, nas mãos de cem realizadores diferentes, dava cem filmes completamente distintos. Se tivesse sido feito pelo Richard Donner, nos anos 80, seria mais um buddy movie musculado, de diálogos espirituosos e truculentos; se tivesse sido feito pelo Michael Bay era um blockbuster vertiginoso, cheio de explosões e tiroteios; e se tivesse sido feito pelo Quentin Tarantino – aliás, alguém descreveu Na Sombra da Lei como o livro perdido de Elmore Leonard – era um pulp estilizado, com muita violência gratuita e música cool.

Mas Na Sombra da Lei foi realizado por S. Craig Zahler e, para quem tem acompanhado o trabalho do autor de A Desaparecida, o Aleijado e os Trogloditas e Rixa no Bloco 99, já sabe que o que vai encontrar não é comparável com nada que já possa ter visto. Tal como nos filmes anteriores, Zahler desacelera o filme a um batimento cardíaco que está ali quase quase a claudicar. Não podia ser mais diferente do blockbuster moderno. Na Sombra da Lei está para o policial assim como A Caminho do Oeste está para o western.

S. Craig Zahler vai, no entanto, beber a todos os códigos do buddy movie. Até a linguagem, muito peculiar, rima com o calão e os palavrões que são usados normalmente nesse subgénero do policial. Só que fa-lo sempre com o seu ritmo muito próprio, apresentando as personagens, dispondo-as no tabuleiro e, depois, atirando tudo para o chão. Zahler mostra sequências inteiras de Vince Vaughn a comer uma salada de ovo e não tem vergonha em acompanhar o dia todo de uma funcionária do banco, desde que sai de casa de manhã, despendido-se demoradamente do seu bebé, até chegar ao banco que vai ser assaltado e onde vai acabar por morrer de forma brutal. Era desnecessário? Completamente. Mas é esse o estilo de Zahler.

Na Sombra da Lei é um heist movie em que dois polícias suspensos vão assaltar os assaltantes de um banco para reporem a justiça das suas vidas pelas próprias mãos. Clint Eastwood teria feito um filmaço com este argumento, ele que tem reflectido sobre essa pagassem do tempo e sobre os antigos que resistem ao progresso do tempo, não tanto a nível tecnológico e físico, mas mais a nível de pensamento e filosofia. Só que Zahler tem outra marca autoral muito forte: a violência extremamente gratuita e gore. E, a partir de certo momento, ela explode-nos nas mãos.

Já deveríamos ter antecipado isso quando começámos a ver uns tipos vestidos totalmente de preto a praticarem assaltos extremamente violentos e cruéis. Mas quando chega ao momento do roubo ao banco, Na Sombra da Lei entra num ponto sem retorno. No final, Zahler tenta fechar o círculo com um arco narrativo perfeito, mas nessa altura também isso já era desnecessário. Na Sombra da Lei pode não ser o melhor filme de acção que vamos ver, mas será certamente um McBacon que nunca vamos esquecer.

Título: Dragged Across Concrete
Realizador: S. Craig Zahler
Ano: 2018

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