Comecemos pelos factos: gente que tenha nascido nos anos 80 e não tenha passado por uma fase em que gostava de ser o Michael Jordan, não é de confiança. Ainda hoje estou convencido de que passou ao meu lado uma grande carreira como basquetebolista não tivesse o Sporting Club Marinhense acabado com os sonhos que o Michael Jordan se esforçou tanto por meter na minha cabeça.
Vem isto a propósito da nova série documental da Netflix The Last Dance. Que o MJ é o melhor de todos os tempos, toda a gente sabe, e esta série encarrega-se bem de o demonstrar. É difícil ignorar a reverência com que, um atrás de outro, os seus companheiros de equipa e adversários falam dele. As histórias de jovens confiantes determinados em destronar o rei também não faltam e acabam invariavelmente com o MJ a esfregar o chão da arena com o corpo inanimado do jovem.
The Last Dance é um documentário de glorificação de um período de ouro protagonizado pelo trio Michael Jordan, Scottie Pippen e Phil Jackson (e, de forma mais ou menos lateral, Dennis Rodman). O suspense não é muito porque já se conhece o final (spoiler alert: os Bulls acabam sempre por ganhar), mas a viagem aos bastidores, à parte submersa do iceberg, vale bem a pena. Aliás, o facto de a equipa de filmagens ter tido acesso ao balneário dos Chicago Bulls naquele que seria o ano do 6º e derradeiro campeonato daquela equipa, é um dos maiores trunfos desta série.
Mas há aqui um lado mais negro. Por exemplo, ainda que o tentem justificar, a forma como MJ se nega a tomar uma posição pelos direitos cívicos dos negros porque “os republicanos também compram sapatilhas (ou ténis, para quem não sabe falar)” é um murro no estômago. É, no entanto, clarificador. Aliás, se há coisa que o documentário deixa bem clara é o narcisismo extremo de Michael Jordan. Ele é o início e o fim de tudo. O seu desempenho, as suas vitórias, o seu sucesso empresarial, Jordan vive obcecado numa ideia de que compete com todos os que o rodeiam. E isso pode ter criado o melhor jogador de basquetebol de sempre, mas também gerou uma pessoa que parece ser, a vários níveis, bem mesquinha, cruel e insuportável.
Correm rumores de que Pippen não estará propriamente contente com a forma como é retratado aqui, mas, com sinceridade, sai-se muito melhor o 33 do que o 23 desta história. Ao passo que, por exemplo, o documentário não tem problemas em contar a história da birra de Pippen quando, na última jogada de um encontro (no interregno de Jordan), Phil Jackson não desenha uma jogada em que seja ele a tentar garantir a vitória da equipa, a verdade é que, com toda a naturalidade, é o próprio Scotty Pippen que admite o seu erro. Por outro lado, é um bocado chocante a forma como se naturaliza (e até valoriza) o bullying constante a que Jordan sujeitava os seus colegas de equipa.
Vale certamente a pena ver e rever este documentário pela visão alargada que nos dá do brilhantismo atlético de Air Jordan, mas não consigo deixar de pensar que, no meio de uma naturalização de um individualismo competitivo e egoísta, o tiro acaba por sair pela culatra e acabamos por ficar com a imagem de uma espécie de Charles Foster Kane do basquetebol. Um homem genial e muito pouco recomendável.
O autor confere a este filme um McRoyal Deluxe.
* texto por Diogo Augusto
Título: The Last Dance
Realizador: Jason Hehir
Ano: 2020