Existem filmes cuja origem é bem mais interessante do que o próprio filme em si. É o caso de Ganja & Hess, título seminal do cinema afro-americano, filme de culto e um percursor de gente como Spike Lee (fã confesso, até fez o seu próprio remake, Da Sweet Blood of Jesus) e Jordan Peele. Ora escutem: com o intuito de capitalizar o sucesso de O Vampiro Negro junto do grande público, Bill Gunn, homem do teatro, foi contratado para fazer um blaxploitation com vampiros. Gunn realizou um filme avant garde, levou-o a Cannes sem ninguém saber e ganhou inclusive um prémio. De volta aos Estados Unidos, os produtores ficaram sem saber o que fazer com Ganja & Hess. Mandaram-no pastar, Gunn nunca mais realizaria na vida, e o filme foi retalhado numa nova versão, Blood Couple, que falhou igualmente nas bilheteiras. Ganja & Hess ganhou o estatuto de culto e passou a ser um título fundamental na história da cultura negra.
De facto, Ganja & Hess tem os condimentos de um blaxploitation (um elenco exclusivamente negro, música soul, sexo e sangue…), mas tem muito pouco de exploração. Bill Gunn realiza antes um filme artístico, entre o experimental e o poético, em que tanto filma cenas de sexo como se fosse Alain Resnais em Hiroshima, Meu Amor, como enche a banda-sonora de drones e música tribal africana. Nem sempre percebemos o que estamos a ver, mas há sempre a sensação de que estamos a ver algo importante. E Ganja & Hess até pode ser desconexo no seu todo, mas há momentos memoráveis.
A história até se resume de forma simples. Hess Green (Duane Jones, de A Noite dos Mortos-Vivos) é um intelectual que estuda a antiga civilização de Myrthia. Quando é esfaqueado por um artefacto dessa civilização por um assistente recém-contratado (interpretado pelo próprio Bill Gunn), Hess Green transforma-se num vampiro, apesar da palavra nunca ser mencionada. Mas que outra coisa se chama a um ser imortal com um apetite voraz por sangue? Rapidamente entra em cena a ex-mulher do assistente, Ganja (Marlene Clark), que não quer saber que o antropologista tenha assassinado o seu marido(!) e casa-se com ele, trasnformando-se igualmente numa vampira. Só os Amantes Sobrevivem podia muito bem ser a sequela de Ganja & Hess, se entretanto Hess Green não decidisse que queria terminar com a sua vida eterna…
Ganja & Hess é um filme arriscado e experimental, seja nos enquadramentos pouco ortodoxos que experimenta, seja na forma como trata o som ou a edição. Além disso, Bill Gunn monta um par de diálogos de tal forma coloquiais que parece que Quentin Tarantino veio beber aqui directamente (e, se calhar, até veio), filma sequências inteiras de missas afro-americanas (com muito gospel), enche a banda-sonora de espirituais e experimenta todos os efeitos-especiais analógicos possíveis para a altura, como aqueles filmes psicadélicos da contra-cultura.
No final, Ganja & Hess revela-se numa reflexão sobre a identidade afro-americana, especialmente a sua vocação religiosa e as raízes tribais, na dicotomia entre cristianismo e tribalismo. Tal como os bluesmen precisavam em igual medida da missa ao domingo de manhã, como o pecada ao sábado à noite, também o doutor Hess Green necessita da salvação às mãos de Cristo, como do poder ritualista da antiga civilização de Myrthia. Tal como a história sobre Ganja & Hess é mais interessante do que o próprio filme em si, também o Cheeseburger que traz a acompanhar é mais saboroso no papel do que na prática.
Título: Ganja & Hess
Realizador: Bill Gunn
Ano: 1973