| CRÍTICAS | Bent

No início de Bent temos algumas dificuldades em nos localizar. O filme começa com uma festa de grande volúpia, em que o anfitrião é o Mick Jagger em modo drag queen (em que fica perturbadamente parecido ao Kadafi), num terraço decadente. Começamos a desconfiar que a coisa se passa em Berlim pelos anos 30 ou 40 porque vemos por ali uniformes nazis (ou será que é só uma cena kinky com fardas?) e porque, às tantas, há de aparecer um tipo vestido a inspector da Gestapo.

Sim, era mesmo um inspector da Gestapo. E sim, eram mesmo soldados nazis. Mick Jagger rapidamente denuncia os seus convidados, recebe uma pipa de massa e desaparece, abandonando de vez o seu alter-ego Greta. Os soldados lá invadem o loft de Max (Clive Owen) e do namorado (Brian Webber), onde estão com um soldado que o primeiro engatou na noite anterior, e, long story short, acabarão todos num campo de concentração.

É difícil reconhecer a Alemanha nazi para lá dos uniformes, porque o realizador Sean Mathias apenas filma uma espécie de undergound de decadência e pobreza, mas de forma romantizada e glamorizada. Quando chegamos ao campo de concentração e percebemos que é apenas uma pedreira algures já entendemos que é uma mistura entre o baixo orçamento do filme e a experiência de Mathias em teatro a falar mais alto. Afinal, Bent é a adaptação para o grande ecrã da peça de grande controvérsia do próprio Sean Mathias, conceituado encenador que foi, durante muitos anos, companheiro de Ian McKellen (que também há de passar pelo ecrã, assim como um jovem Jude Law).

Essa abordagem teatral com cenários de luz recortada e de grande profundidade exageram a carga dramática da história, que por si só é já uma tragédia de faca e alguidar. Na viagem de comboio até ao campo de concentração, Clive Owen e o companheiro vão finalmente chocar de frente com todo o processo de degradação da máquina nazi. Enquanto Brian Webber é morto, Clive Owen é destituído de qualquer pinga de humanidade e dignidade, ficando no ar a a questão: qual dos dois será pior? É uma das sequências mais duras de todo o cinema do Holocausto.

No campo – que, supostamente, deveria ser Dachau -, Clive Owen conhece Horst (Lothaire Bluteau), com quem vai ser colocado a cumprir uma actividade tão inconsequente, quanto frustrante: carregarem pedras de um canto para o outro e vice-versa, quando terminarem. É um processo de desumanização constante, com aqueles homens em movimento perpétuo sobre si próprios, enquanto desenvolvem uma relação de amor-ódio.

A primeira questão lançada é logo uma provocação forte. Mesmo dentro dos descriminados, há uns mais descriminados que outros. Nos campos de concentração a estrutura social é igualmente vertical e os judeus estão no topo, enquanto que os homossexuais estão na base. Clive Owen vai mentir, trair e violar para obter a estrela amarela dos judeus em vez do triângulo rosa dos homossexuais, para desgosto de Horst. Será legítima essa sua vontade de fazer o que for necessário para sobreviver?

Bent levantou controvérsia pela sua relação homossexual em campos nazi, mas isto não tem nada a ver com a normalização de O Rapaz do Pijama às Riscas ou um Jojo Rabbit. Isto é uma reflexão dura, que não reduz as coisas a uma simplificação de amor em temps de guerra e em que as palavras e os gestos se sobrepõem às imagens, que pode mesmo ser visto como uma metáfora mais abrangente. Bent é provocador e um dedo na ferida. Um excelente Le Big Mac.

Título: Bent
Realizador: Sean Mathias
Ano: 1997

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