| CRÍTICAS | Wake in Fright

A carreira do realizador Ted Kotcheff, com duas obras-primas tão opostas – A Fúria do Herói e Fim-de-semana com o Morto – já era estranha o suficiente, mas antes de tudo isso ainda teve outro momento mais bizarro. No início dos anos 70, Kotcheff viajava até à Austrália para fazer Wake In Fright, que seria exibido em Cannes com uma recepção calorosa. No entanto, um fiasco na bilheteira australiana retiraria o filme de circulação, que, segundo as lendas, diziam ter sido destruído. Nascia assim uma aura de culto à sua volta, elevado ao topo da new wave australiana, ao lado de Walkabout, o outro filme australiano de culto que, no mesmo ano de 1971, passaria também em Cannes.

Toda a gente conhecia e amava Wake in Fright, mas poucos o tinham visto. Se calhar até era melhor assim, porque a maioria destes filmes perdidos, afinal, quando se vai a ver, não são assim tão bons quanto a sua própria história. Mas Wake in Fright seria descoberto, Scorsese empenharia-se no seu restauro e o filme tornar-se-ia no primeiro título a ser exibido duas vezes em Cannes. E, surpresa!, não é que Wake in Fright merecia mesmo as loas que lhe teciam?

Wake in Fright é a história de um professor primário (Gary Bond), que dá aulas numa terriola perdida algures no outback australiano, que odeia de morte, mas que não pode abandonar por estar amarrado a uma caução milionária, que o arruinaria se quebrasse o contrato. Por isso, conta as horas até embarcar num voo para Sidney, para as férias do natal, de regresso aos braços da amada e à civilização a sério.

No entanto, ao parar na cidade (imaginária) de Bundanyabba (que os locais chamam de The Yabba, assim mesmo, com artigo definido primeiro) para passar a noite, Gary Bond acaba por perder todo o seu dinheiro numa má decisão nocturna. Completamente liso, numa altura em que ainda não haviam multibanco, Gary tem que se desenrascar durante o fim-de-semana, até conseguir dinheiro para apanhar o voo par Sidney.

De repente, Gary Bond envereda numa espiral auto-destrutiva com os locais, que tanto despreza, alimentada a álcool, violência, álcool, sexo e álcool. Ah, e já disse álcool? De repente, Gary começa a perceber que aqueles campónios, que tanto odeia, afinal estão só a tapar traumas e isolamento sobre quantidades imensas de bebida e deboche e que a sua sobranceria mais não é do que privilégio branco de quem se pode dar ao luxo de ter uma educação, receber um ordenado ao fim do mês e, bem, ser branco numa terra de aborígenes.

Wake in Fright é o filme que Another Round gostaria de ter sido, mas vai muito mais além do que a drinking culture. É ainda uma viagem de auto-descoberta interior até à redenção final, tão violenta quanto trágica, que vai levar Gary Bond a perceber que a sua ideia daquela gente rude do campo é, afinal, moldada por julgamentos toldados por julgamentos morais. É perturbador porque põe o dedo na ferida, mas porque é também cru e visceral, que tem o seu auge numa cena de caçada de cangurus que, de tão gráfica que é, se torna sensacionalista. Difícil conseguir assisti-la por inteiro sem desviar o olhar.

Apesar da sua escola feita em Hollywood, Kotcheff parece ter ido para a Austrália influenciado pela nova vaga inglesa, de gente como Tony Richardson ou Nicolas Roeg – os temas fracturantes, os desajustados, uma nova liberdade criaiva de fazer cinema desalinhada com as normas vigentes… -, que curiosamente também filmaram na Austrália (coincidência?). Aliás, Roeg fazia no mesmo ano o já citado Walkabout, o outro título seminal da cinematografia australiana dessa altura. Wake in Fright consegue ainda ser poético e simbólico, sem cair no psicadelismo das drogas, e capta como poucos o espírito do lugar do outback australiano. Há poucos filmes mais pegajosos, suados e empoeirados que este McRoyal Deluxe, que é preciso empurrar para baixo com uma cerveja. Os personagens deste filme aprovariam a sugestão, mas ficar-se-iam pela bejeca e substituiriam a hamburguesa por outra jola.

Título: Wake in Fright
Realizador: Ted Kotcheff
Ano: 1971

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