Ingmar Bergman sempre foi o melhor a analisar a intimidade e a psique dos escandinavos, provando-nos por a mais b que, por mais que nos vendam a ideia de que lá no norte são todos maravilhosos e perfeitos, por trás dessa capa os traumas e a disfuncionalidade é igual. Por isso, da Escandinávia continuam-nos a chegar alguns dos filmes mais perturbadores que nem sequer são de terror.
Rainha de Copas é mais um desses títulos. Vem da Dinamarca, país desse outro filme bem inquietaste que é A Festa, e tem como protagonista uma das actrizes dessa obra-prima de Thomas Vinterberg, Trine Dyrholm. Aqui, ela é uma bem sucedida advogada de jovens vítimas de violação, violência ou abuso, com um casamento feliz, duas gémeas e uma casa incrível. Aquele núcleo familiar vai sofrer uma alteração forte quando vai para lá viver Gustav (Gustav Lindh), o filho de outro casamento do marido. Trine Dryholm, num misto de aborrecimento e desejo, vai acabar por se envolver com o afilhado, numa relação tão proibida quanto errada.
Aliás, a relação é duplamente errada, tendo em conta a profissão de Dryholm, que assim se torna precisamente naquela pessoa de quem ela protege as vítimas que defende. Por isso, o choque maior é quando Trine Dryholm acaba por reagir a toda aquela situação agindo da forma menos esperada. Gustav vai ser o adulto daquela relação, mas Rainha de Copas não tem medo de ser um filme extremamente imoral (amoral?) e de nem sequer tentar o happy ending.
A realizadora May el-Toukhy vai montando e desenvolvendo a engrenagem de Rainha de Copas com grande parcimónia e inteligência narrativa, por isso surpreende que, por duas ou três vezes, dê um safanão no filme, que dá um salto maior do que previsto. No entanto, é totalmente eficaz em fazer a mudança do drama familiar para o thriller no último acto do filme. E como qualquer thriller erótico, as cenas de sexo são bem sensuais. Aliás, a trivia do imdb refere que essas cenas não foram simuladas. Ihihih.
Trine Dyrholm é, no entanto, a grande responsável por garantir o sucesso de Rainha de Copas. Numa versão muito próxima da mulher de forma de Robin Wright, em House of Cards, Dyrholm redefine o conceito de femme fatale, conseguindo passar do respeitável ao odiável com grande eficiência. Um óptimo McBacon, da quase sempre fiável Escandinávia.
Título: Dronningen
Realizador: May el-Toukhy
Ano: 2019