Não há volta a dar. Para alguém que goste de música, Get Back é uma experiência obrigatória e inesquecível. São quase oito horas de imersão no processo criativo daquela que foi provavelmente a banda mais influente de sempre. O que é espantoso é que todo o esplendor do documentário é conseguido apesar do esforço hercúleo do realizador, Peter Jackson, em fazer um péssimo trabalho. Para ser sincero, havia grande probabilidade de fechar um macaco numa sala com um computador aberto num programa de edição de vídeo e sair uma coisa melhor.
O documentário apanha os Beatles numa fase em que já não se podem ver à frente. Um grupo de amigos de Liverpool tornou-se na mais importante banda do mundo e agora não sabem como lidar com isso. O Ringo Starr parece depender alegremente do que quer que os outros decidam, o George Harrison descobriu que sabia escrever canções, mas que pertence a uma banda onde elas não têm lugar, o John Lennon navega uma onda niilista alimentada a heroína, ressentimento e nostalgia e o Paul McCartney tenta desesperadamente fazer com que a banda ande seja para onde for.
A espectacularidade das imagens que servem de base ao documentário é inegável. Ver os Beatles presos numa espécie de Big Brother enquanto tentam gravar um álbum é um privilégio que poucos julgavam possível. Temos acesso quer a detalhes que, sinceramente, pouco interesse têm para além do puro voyeurismo quer do processo de criação de canções de quem o fez como ninguém.
Peter Jackson tinha um trabalho: agarrar em 60 horas de filme e contar uma história. Espalhou-se ao comprido. Durante quanto tempo quererá uma pessoa normal ver o John Lennon a parodiar uma canção dos anos 50? Quanto interesse terá saber das dinâmicas das relações pessoais dos envolvidos, dos azedumes e dos ressentimentos? Com 60 horas de filme na mão, Jackson só poderia ter feito um bom trabalho se soubesse, à partida, que história queria contar. Caso contrário, corria o risco de ter uma manta de retalhos hiper longa sem um fio condutor, uma mistura de imagens que mostrava os Beatles ora zangados, ora patetas, ora pensativos, sem uma linha narrativa que desse sentido ao que se estava a ver. Claro que foi exactamente isso que acabou por acontecer.
Jackson fiou-se demasiado no poder das imagens que tinha e tramou-se. Aliás, tramou-nos.
Ao mesmo tempo que passamos infindáveis minutos a ver a banda a aparvalhar, há uma série de perguntas que ficam, inexplicavelmente, sem resposta. Yoko Ono, que no documentário desempenha o papel de sombra de John Lennon é uma presença estranha que alimenta desconfianças e ressentimentos, mas pouco este documentário faz para mostrar o impacto que a sua presença teve no futuro da banda. Pouco faz, aliás, para olhar para a coisa de forma um bocado mais cuidada que ultrapasse a misoginia e o racismo (a malvada japonesa que desencaminhou o John Lennon) que sempre pontuaram a história informar do desaparecimento da banda.
George Martin, uma figura absolutamente central nos melhores e mais inovadores álbuns dos Beatles, aparece aqui como figura meio fantasmagórica que perdeu a mão no processo criativo da banda. É pena que isso não seja abordado seriamente. Mesmo Billy Preston, que aparece no meio do processo como o negro que levou autenticidade a um bando de músicos ricos com síndrome de impostor, não é senão uma peça de cenário. O que não deixa de ser estranho se tivermos em conta que chegam a considerar a possibilidade de ele integrar a banda de forma permanente.
Mas o que é verdadeiramente incompreensível é como, depois de 9 horas que culminam no célebre concerto no telhado londrino, Peter Jackson consegue remeter a gravação de metade do álbum (a melhor metade) para uma montagem apressada por cima dos créditos. No final fica a alegria de poder ter tido o privilégio de ver os Beatles a trabalhar e a desilusão por o trabalho ter sido entregue a um sapateiro que parece ter feito tudo para entregar o pior trabalho possível. Felizmente, a matéria-prima é suficientemente boa para sobreviver.
Texto por Diogo Augusto
Título: Get Back
Realizador: Peter Jackson
Ano: 2021