o texto pode contar spoilers
Ao admitir a existência do multiverso – realidades alternativas, em que tudo pode acontecer -, a Marvel tomava uma decisão de génio, matando dois coelhos com uma cajadada. Por um lado, arranjava um truque para explicar todos os buracos que poderiam haver nas suas histórias, tendo um deus ex machina à mão de semear para usar sempre que necessário; e, por outro, abria a porta a uma possibilidade infinita de variações das suas próprias histórias, incluindo a reciclagem de fórmulas já usadas que provaram ser de sucesso.
No cinema, o multiverso – assim como o acordo entre a Marvel e a 20th Century Fox – permitiu então à empresa ir buscar para o seu catálogo o Homem-Aranha e absorver para o seu universo cinematográfico tudo aquilo que aconteceu com a trilogia do Tobey Maguire e até os dois filmes fraquinhos do Andrew Garfield (para não falar dos horríveis Venom, de acordo com a cena pós-créditos). Como assim absorver?, perguntam vocês. Assim mesmo, absorver!, respondo eu, com ponto de exclamação no final e tudo. É que Jon Watts, neste último tomo da trilogia que inaugura o novo Homem-Aranha de Tom Holland, Sem Volta a Casa, os três actores reúnem-se para uma aventura conjunta.
É um momento único, diga-se de passagem. É como se agora houvesse um episódio do James Bond com todos os actores que já representaram o agente 007. E não só. Com essa fusão, Sem Volta a Casa pode ir também os vilões desses filmes, encontrando finalmente o pretexto certo para activar os Sexteto Sinistro, que de vez em quando se falava sempre que era anunciado um novo filme do Homem-Aranha. É certo que falta aqui o Abutre (e Mistério morreu), mas temos Alfred Molina rejuvenescido digitalmente (assim como os seus tentáculos em CGI) de volta como o terrível Doutor Octopus, um Jamie Foxx que felizmente leva um upgrade e deixa de ser aquele Electro ranhoso (e constrangedor) de O Poder de Electro, o inofensivo Homem-Areia de Thomas Haden Church, o Lagarto de Rhys Ifans em plena masturbação digital e aquele que foi até hoje ok melhor vilão dos filmes do Aracnídeo, o Duende Verde de Willem Dafoe.
Além disso, o Homem-Aranha conta ainda com a ajuda do Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch), até porque foi ele que nos introduziu ao multiverso, e há ainda a presença dos seus companheiros habituais, a namorada MJ (Zendaya) e o bff Ned (Jacob Batalon), assim como a tia May (Marisa *suspiro* Tomei) e Happy (Jon Favreau). Uff, um carregamento de nomes sonantes, que faz com que durante a primeira metade do filme estejamos sempre a surpreender-nos e a apontar “olha aquele!”. E nem vos falei do cameo de Matt Murdock (Charlie Cox), ou seja, o Demolidor da Netflix, ou o update de J. Jonah Jameson (J. K. Simmons) para promotor de desinformação online.
Jon Watts tenta manter aquele espirito do filme de adolescentes sem adultos por perto, sempre com John Hughes como referência, mas Sem Volta a Casa é um balão que vai enchendo e, às tantas, já não há espaço de manobra para mais nada se não esgalhar o trunfo do espectáculo CGI, numa grande batalha final com esta malta toda. O problema é que, antes de isso acontecer, há ali um espaço em branco, que o filme tem dificuldade em preencher. Em Sem Volta a Casa o Homem-Aranha torna-se demasiado bonzinho, um salvador do mundo tipo Madre Teresa de Calcutá, que vai “arranjar”(!) os maus todos para que eles se tornem boas pessoas(!!), levando longe de mais a máxima com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.
Não sou grande fã desta versão do Homem-Aranha mais adolescentes, que inverte aquele paradigma que foi sempre um dos segredos da sua popularidade: a do underdog, o working class hero que, apesar dos super-poderes, sempre teve que lutar para ter dinheiro ao fim do mês para pagar a renda de casa. O Homem-Aranha de Tom Holland, com todos os gadgets que lhe deu Tony Stark, é mais um símbolo do neo-liberalismo norte-americano, do qual a Marvel faz constantemente apologia, ou não fossem eles uns dos maiores símbolos do capitalismo massivo e galopante que consome tudo à sua volta. Mas há que dar o braço a torcer que Jon Watts soube bem cruzar Holland, Maguire e Garfield, captando na perfeição os seus traços principais que incutiram na personagem, que vale por inteiro o filme. O McChicken é para eles e para o multiverso, porque como filme Sem Volta a Casa deixa muito a desejar. Outra vez.
Título: Spider-Man: No Way Home
Realizador: Jon Watts
Ano: 2021