Em meados do século XIX, Baudelaire cunhava o termo spleen, associado a uma espécie de tédio existencial, muito típico do decadentismo. Dois séculos depois e em plena Era Digital, podemos dizer que o spleen foi actualizado para o muito in FOMO, o fear of missing out, uma versão cada vez mais pós-moderna dessa teenage angst que o cinema (e o rock n roll) resumiu num só título: rebeldes sem causa.
Julie (Renate Reinsve), a protagonista de A Pior Pessoa do Mundo, sofre claramente disso tudo. Aliás, o prólogo do filme, de uma forma muito concentrada e igualmente eficaz, introduz-nos logo aos primeiros anos da sua adolescência e ficamos logo a perceber tudo. Depois de ter terminado o liceu com notas altas, em consonância do seu perfil de menina bem comportada, Julie entrou para Medicina, como era expectável de alguém com o sue perfil, para rapidamente se sentir desconfortável na sua vida. Daí, saltou para a Psicologia, porque sempre lhe interessou mais o interior do que o exterior. Mas rapidamente também perceber que não era isso e passou para a fotografia. Até terminar a trabalhar numa livraria, enquanto experimenta a literatura. Felizmente, a família nunca a deixou de apoiar. Os benefício da classe média (e de viver num país de primeiro mundo como a Noruega).
Julie é agora uma jovem adulta e não é por acaso que A Pior Pessoa do Mundo se passa ali entre a passagem dos 29 para os 30 anos. Ou seja, numa fronteira também muito especial, que de certa forma marca a primeira crise existencial das nossas vidas. Ao longo do filme, dividido em mais 12 capítulos (e um epílogo), Julie vai ter uma relação (com o ilustrador Anders Danielsen Lie) e depois outra (Herbert Nordrum), vai ter algumas crises existenciais e, sobretudo, vai ter mais alguns momentos de dúvidas e de necessidade de mudança. Em suma, a angústia existencial nunca a vai abandonar por completo. Como a todos nós, aliás. A diferença é sempre como é que lidamos com ela.
A Pior Pessoa do Mundo é assim um filme sobre a vida e, sobretudo, sobre o amor, mas em formato saga. Não é um épico, apesar da longa duração (são quase duas horas e meia, mas sempre tão lights, como se fosse uma comédia romântica – uma comédia romântica para quem não gosta de comédias românticas, como tem sido descrito, aliás), e a estrutura narrativa dividida por capítulos (alguns bem curtos), faz com que seja mais um conjunto de vinhetas do que um filme com um arco convencional. E cada uma dessas entradas serve para ilustrar, mais do que um momento fulcral naquele período da vida de Julie, um arquétipo qualquer: um primeiro encontro com alguém novo, a decisão em ter (ou não ter) filhos, uma mudança de carreira…
Woody Allen aprovará este filme se o vir (há aqui ecos do seu cinema neurótico e existencialista), Noah Baumbach também (na forma como analisa o funcionamento (disfuncional) do núcleo familiar) e até Richard Linklater o poderá considerar para a quarta sequela não oficial da sua trilogia Before. Mas o melhor de A Pior Pessoa do Mundo, além de Renate Reinsve, é mesmo a realização do dinamarquês Joachim Trier, que nunca se limita a ser um mero tarefeiro a encadear situações. Primeiro, com um óptimo trabalho de edição, que consegue ilustrar ligas situações em rápidas sequências de flashes, como se estivesse a pintar por pinceladas; e segundo com algumas opções artísticas que vai tomando, inserindo um imprevisto narrador aqui, depois inserindo ali uma sequência à O Grande Peixe em que o mundo todo para excepto o apaixonado casal de protagonistas…
Depois de ter brincado com o cinema de género no interessante Thelma, Joachim Trier dá uma guinada de 180 graus e atira-se… à vida. Em troca, damos-lhe um McRoyal Deluxe. Parece-me uma transação justa, em que ninguém sai a perder. Especialmente nós.
Título: The Worst Person in the World
Realizador: Joachim Trier
Ano: 2021