| CRÍTICAS | Laranjas Sangrentas

Ainda recentemente tivemos oportunidade de ler no suplemento cultural de um dos jornais da nossa praça que não podemos mencionar que é o Público uma entrevista com a pensadora espanhola Victoria Camps sobre o seu mais recente livro, sobre a felicidade, onde ela nos lembrava a receita de Aristóteles para ser feliz: uma vida virtuosa, a moderação dos desejos e a participação na política. Coincidência – ou talvez não -, são esses também os três pilares fundadores das três histórias que se interligam em Laranjas Sangrentas, o filme-coral do francês Jean-Christophe Meurisse que tem dividido opiniões.

Recorremo-nos da sinopse para falar dessas três histórias bem distintas entre si, mas que acabam por se tocar no final. A primeira é a de um casal de seniores que participa num concurso de rock’n’roll, na esperança de ganharem o primeiro prémio para poderem saldar as dívidas em que estão afogados; a segunda é a do ministro das Finanças francês, que tem pendente sobre a cabeça uma acusação de evasão fiscal; e a terceira é a de uma jovem de 16 anos, a preparar-se para a emancipação sexual, que vai ter um encontro de frente com um pervertido. Ou seja, viver uma vida virtuosa, participar na política e ser moderado nos desejos. Aristóteles a manter-se tão actual hoje como antes.

Este breve resumo não é erróneo, mas não é representativo – nem sequer um pouco – do que é Laranjas Sangrentas (cujo título tanto pode referir à violência de A Laranja Mecânica, como às laranjas que antecipam sempre uma morte em O Padrinho). No entanto, durante cerca de 1 hora nem sequer percebemos porque é que o filme tem deixado tanta gente aborrecida e a utilizar rótulos como “sensacionalista” ou “misógino” para justificarem a sua indignação. É certo que existem muitos momentos desconfortáveis, mas eles são resultado dos diálogos escorreitos entre as várias personagens que se vão cruzando entre as várias histórias do filme, como se esta fosse uma versão mais politicamente incorrectas (expressão odiosa) de um filme de Woody Allen.

É então que entra em cena a personagem de Frédéric Blin e Laranjas Sangrentas dá uma guinada de 180 graus. É ele que vai ser o agente de mudança da direcção do filme, mas também de todas os protagonistas que, de uma maneira ou de outra, vão ser vítimas de humilhação. Já dizia a filósofa Victoria Camps, na mesma entrevista que referi no primeiro parágrafo, que o bem comum é um conceito que desapareceu das democracias de hoje. Mais uma vez, talvez a coincidência não seja assim tão… coincidência. Eis então o realizador Jean-Christophe Meurisse a utilizar essa tradição bem francesa do grand-guignol para ilustrar a sua metáfora, não se coibindo em poupar no sangue. Sim, se calhar é mais giallo e menos grand-guignol. E finalmente percebemos porque está o selo do MotelX no cartaz do filme.

De repente, Laranjas Sangrentas vai buscar o serial killer de O Silêncio dos Inocentes, o primeiro episódio do Black Mirror, o Hard Candy e o Michael Haneke, espreme tudo para o mesmo caldeirão (espreme porque são laranjas, estão a perceber? ihihih) e serve-nos tudo de bandeira, sem deixar sequer arrefecer. Como não estamos preparados para o choque, depois de uma hora de um filme… diferente, a coisa apanha-nos de chofre e pode parecer gratuitamente provocadora. Mas quando a poeira começa a assentar, as metáforas ganham ressonância e Laranjas Sangrentas justifica por completo o McBacon.

*texto publicado originalmente no Deus me Livro

Título: Oranges Sanguines
Realizador: Grand-Guignol
Ano: 2021

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