| CRÍTICAS | Quase Famosos

Antes de ser o conhecido e oscarizado realizador de cinema e de telediscos de muita gente igualmente famosa, Cameron Crowe trabalhou como jornalista para a Rolling Stone. Foi assim que andou em digressão com os Allman Brothers, quase que foi desta para melhor num avião prestes a cair com os The Who, tornou-se amigo próximo de Glenn Frey, dos Eagles, e até escreveu ele próprio as liner notes do disco seminal de Peter Frampton, Frampton Comes Alive! Tudo isto serviu de matéria para criar Quase Famosos, o filme em que ficção e realidade se misturam para contar a essência do rock’n’roll.

Sim, Quase Famosos é um coming of age de um jovem de 15 anos (Patrick Fugit) que, depois de ser salvo pelo rock’n’roll da educação… alternativa da mãe (Frances McDormand), se viu precocemente contratado pela Rolling Stone para acompanhar os Stillwater em digressão – banda fictícia formada por Billy Crudup e Jason Lee, livremente baseada nos Allman Brothers e em todo um folclore de 10 anos de rock’n’roll circa década de 70, incluindo os episódios relatados no primeiro parágrafo deste texto. No entanto, Quase Famosos é, antes de mais, um filme sobre o rock e sobre o seu carácter hedonista, catalisador da máxima sexo, drogas e rock’n’roll.

Por isso, Quase Famosos é um filme quase idealizado, que romantiza as drogas, o sexo (e nem vamos falar das groupies, que eram quase todas jovens menores de idade que acompanhavam as bandas para todo o lado de forma não-oficial, porque há aqui uma parte de empoderamento feminino que é quase sempre ignorado) e toda a boémia da mitologia rock’n’roll. É assim um filme que nos faz facilmente amaldiçoar por não termos nascido naquela altura e termos vivido quando o rock criou a contracultura e lançou as bases para quase tudo o que é cultura popular contemporânea.

Já falámos aqui da personagem de Patrick Fugit, o miúdo precoce que, de repente, se vê a partilhar o autocarro de digressão com os prestes a explodir Stillwater, travando amizade próxima com o guitarrista (Billy Crudup) e sendo apadrinhado pelas groupies que os seguem. No entanto, a personagem fundamental de toda esta trama, que envolve muitos secundários mais ou menos vistosos (incluindo uma desconhecida Zooey Deschanel na pele da irmã, uma breve participação de Jimmy Fallon como o manager enviado pela label para controlar o descalabro da tour ou os cameos não creditados de Mark Kozelek ou Peter Frampton, este último a pagar o favor pelas liner notes décadas antes, compondo os temas da banda-sonora para os Stillwater, onde se destaca o temaço Fever Dog – foi isto mesmo composto por Frampton?), é Kate Hudson. A sua Penny Lane é uma jovem groupie, que acaba por desenhar um triângulo amoroso com Fugit e Crudup, se bem que este não é necessariamente um triângulo romântico.

Kate Hudson, que teve aqui o papel da sua carreira, não se limita a passar a imagem tradicional das groupies – mulheres mais ou menos patetas, que só se interessavam por se deitar com músicos famosos -, acabando antes por incarnar todo o hedonismo rock’n’roll de uma só vez. É por isso que o filme é sobre ela. E também sobre a amizade, sobre o companheirismo, sobre a lealdade e, claro, sobre a passagem para a idade adulta. Sim, Quase Famosos é um coming of age, mas é também um road movie.

Finalmente, é fundamental destacar também Philip Seymour Hoffman, que interpreta o jornalista e crítico musical Lester Bangs. Primeiro, porque é ele o elemento real desta história, que permite ao filme navegar em alto mar, mas sem perder a costa de vista. Ou seja, é ele que permite manter um certo nível de reconhecimento em Quase Famosos, mesmo quando tudo o resto é ficção. Por exemplo, quando Crudup sobe a um telhado numa festa, encharcado em ácidos, e grita que é um deus dourado, é tudo ficção, mas nós sabemos o que realmente se está a passar ali. Quer dizer, pelo menos todos nós que gostamos minimamente de rock’n’roll, sabemos o que aconteceu nos anos 70 e sabemos quem são os Led Zeppelin. O Lester Bangs de Philip Seymour Hoffman é o lastro de realidade que Quase Famosos carrega.

Quase Famosos é assim uma narrativa quase fabulástica, onde obviamente o storytelling tem papel fundamental. E Cameron Crowe pode não saber fazer filmes muito profundos, de grande densidade dramática (afinal de contas, este um cineasta feito nos videoclips, um formato onde qualquer possibilidade narrativa é sempre ligeira e à superfície), mas sabe contar histórias. Por isso, por entre a mitologia rock’n’roll, que é sempre apelativa quer queiramos quer não, Quase Famosos é um joyride hedonista, que capta e cristaliza um momento muito específico da história da música popular contemporânea de modelo anglo-saxónicas. Se isso não é suficiente para justificar o McRoyal Deluxe então não sei o que será mais preciso.

Título: Almost Famous
Realizador:
Cameron Crowe
Ano: 2000

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