| CRÍTICAS | Rock de Fogo

Jerry Lee Lewis, um dos pioneiros do rock’n’roll, desde cedo que conquistou o cognome de “o louco do rock” devido ao seu comportamento de extremos, excêntrico e rodeado de polémicas. Por isso, ver um biopic como Rock de Fogo, que é todo ele celebração e idealização, não deixa de ser irónico. A própria ex-mulher, Myra Gale, que escreveu as memórias que serviram de base ao filme, viria a renegar qualquer coisa a ver com a adaptação, uma vez que tinha escrito o livro para denunciar a relação abusiva com o músico e acaba por ver uma obra que termina com final feliz, todos juntos para sempre, no preciso momento em que nasce o filho de ambos. Plot twist: a criança viria a falecer precocemente e seria um trauma na vida de ambos. Excelente forma de terminar o filme.

Rock de Fogo é assim mais uma caricatura do que um filme biográfico, do que mais do que a vida de Jerry Lee Lewis pretende captar o espírito da música de Jerry Lee Lewis. No fundo, é mais ou menos o que Baz Luhrmann fez no recente filme do Elvis Presley, só que aqui parece tudo mais involuntário do que outra coisa. Mesmo que o realizador Jim McBride insista em recriar episódios que fazem parte da lenda e não dos factos sobre o Killer, como a icónica cena em que o músico, perante um Chuck Berry irredutível em o deixar fechar a noite de concertos, incendiou o piano enquanto tocava (curiosamente um episódio que parece ter ganho mais com o filme do que vice-versa). Sim, é pouco provável que Jerry Lee Lewis o tenha feito na verdade. Sim, o seu baixista original chegou a negar a historia. Sim, Jimi Hendrix fê-lo e provavelmente foi aí que toda a gente se foi influenciar para criar este episódio. E então? O que é que isso interessa?

Também é pouco provável que Elvis, antes de ir para a Alemanha para integrar o exército norte-americano, tenha ido passar o testemunho a Jerry Lee Lewis, como o filme mostra. Mas Rock de Fogo gosta de criar esses momentos, numa estrutura esquemática, onde é importante sublinhar a traço grosso todas as mensagens e ideias que quer passar. Por isso, fica de fora tudo o que sejam polémicas com drogas, bebidas ou violência doméstica (ou outro tipo de violência), num processo de higienização que é impossível alguém levar a sério. E, por isso, também é impossível alguém levar a mal. Rock de Fogo é fun fun fun e só isso interessa.

Em contrapartida, há um momento determinante em Rock de Fogo. É quando Jerry Lee Lewis e a sua banda estão a tocar numa roadhouse manhosa, daquelas em que as bandas têm que tocar atrás de uma rede para não serem atingidos pelos detritos das lutas constantes, e incluem no alinhamento Whole Lotta Shakin’, uma música sexualmente sugestiva que era restrita à comunidade afro-americana. Não só a energia do espírito muda, como uma jovem entra em êxtase físico. É o rock’n’roll a nascer à frente dos nossos olhos (e nos de Jerry Lee Lewis, a ter uma epifania ao piano – pouco depois gravaria o tema para a Sun Records e o resto era história) e a cena a ganhar um poder tão simbólico, que extravasa para lá da caricatura que é o filme.

Também caricatural é o boneco que Dennis Quaid faz de Jerry Lee Lewis, se bem que o actor nunca foi propriamente conhecido pelo seu underacting. Contudo, isso tudo acaba por colar bem com o estilo hiperbólico e exagerado do filme, extremamente divertido e enjoyable. Afinal de contas, o rock’n’roll sempre foi ser jovem, livre e rebelde e é tudo isso que o filme tenta fixar e captar. E o mimetismo de Quaid ao piano é óptimo, o que, aliado às músicas que foram re-gravadas de propósito para o filme pelo próprio The Killer, injecta-lhes uma nova dose de adrenalina.

O filme procurou relançar a carreira de Jerry Lee Lewis, que nunca mais foi a mesma depois da polémica de 1958. Jerry Lee havia casado com a prima(!) de 13 anos(!!) (precisamente Myra Gale, que aqui é encarnada por uma muito jovem Winona Ryder, que encontra aqui mais um veículo perfeito para extravasar todo o seu atinge neurótico) e, ao chegar a Londres para uma digressão inglesa (onde era, à altura, maior que o próprio Elvis), o escândalo rebenta (sim, não havia internet na altura e as notícias não voavam à velocidade da luz). A reputação do músico nunca mais se recompõe e acaba por não cumprir o que parecia fadado a alcançar. Rock de Fogo escolhe precisamente terminar aí, como se não tivesse havido mais nada entre 1959 e 1989. É impossível não gostar de ouvir Jerry Lee Lewis e, por isso, é impossível dar algo mais pequeno que um McChicken a Rock de Fogo.

Título: Great Balls of Fire!
Realizador: Jim McBride
Ano: 1989

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