Depois de vários anos de uma certa irrelevância, quem diria que, num curto espaço de tempo, iríamos ter dois filmes interessantes sobre canibalismo. Qual terá sido o último grande filme com canibais? O Delicatessen conta? Os Canibais, do Manoel de Oliveira? A verdade é que, depois do Raw de Julie Ducournau (e antes dela ir ainda mais longe com o provocador Titane), eis Ossos e Tal, mais um filme onde o canibalismo serve de metáfora para as dores de crescimento na juventude.
Luca Guadagnino volta a reunir-se com Timothée Chalamet, depois do sucesso estrondoso de Chama-me Pelo Teu Nome e, só por isso, Ossos e Tal iria sempre atrair atenções, mesmo para quem não sabe ao que vem (porque o livro baseia-se na obra homónima de Camille DeAngelis, que nem toda a gente conhece) ou quem não aprecia particularmente os sub-géneros do terror. No entanto, a protagonista da história é antes Taylor Russell, aqui a fazer de Zendaya.
Ossos e Tal começa como qualquer filme de liceu, com as dinâmicas entre colegas marcada vincadamente pela pirâmide social da popularidade. Russell é nova na escola, quer fazer amigos e o convite para uma noite sem pais na casa de uma amiga parece-lhe apetecível. Por isso, à noite esgueira-se do quarto (que o pa trancou à chave, estranho), por uma janela aparafusada (duplamente estranho, mas neste momento ainda não juntámos as peças do puzzle) e, em poucos minutos, lá estão as miúdas a fazer o que as miúdas fazem nesse tipo de noites que passam juntas: falar de rapazes, pintar as unhas, comentar as roupas umas das outras e mastigar o dedo anelar da amiga do lado. Como?
Há então um segredo negro na vida Taylor Russell. O pai não aguenta mais e abandona-a quando ela atinge a maioridade, deixando-lhe apenas uma cassete com o relato de tudo o que sabe. A mãe já o fizera anos antes e Russell decide ir procura-la. Eis então um road movie pela middle America, até porque essa é uma estrutura que se adequa bem a qualquer coming of age. Pelo caminho, Russell irá primeiro cruzar-se com Mark Rylance, um outro canibal bizarro (e que, depois da sua outra personagem composta de Não Olhem Para Cima, nos faz interrogar onde é que ele tem andado até agora?), e depois com Timothée Chalamet, igualmente comedor de gente, mas que mata com menos remorsos. Coisas da juventude.
Aliás, Ossos e Tal é um filme sobre a juventude, esse período da nossa vida em que tudo é vivido de forma tão exageradamente extremada. É um filme que recorre ao canibalismo enquanto analogia para a sexualidade, para a diferença de idades, para a hereditariedade e para a liberdade de ser jovem. Por isso, não é de admirar que as cenas na estrada lembrem outros fugitivos do cinema que, por sua vez, também incorporavam outra ideia de liberdade: Bonnie e Clyde ou Os Noivos Sangrentos. Se bem que aqui a morte não tem o mesmo poder niilista.
Pela temática, mas também pelo estilo, Ossos e Tal faz lembrar Só os Amantes Sobrevivem. No entanto, o cinema de Guadagnino é muito mais calculista e manipulador, que sabe se aproveitar dos seus actores ou da mise-en-scene. É tudo muito bonito, mas porque Guadagnino é um esteta que gosta de se exibir. É por isso que a personagem de Mark Rylance é uma pedrada no charco, que chega para desassossegar Taylor Russell e o próprio filme. Ossos e Tal nem precisava dos seus últimos 15 minutos, altamente gore, que só vem sublinhar a traço grosso a sua metáfora central do canibalismo. Tivesse terminado antes e o McChicken teria outro encanto.
Título: Bones and All
Realizador: Luca Guadagnino
Ano: 2022