Existem filmes assim, difíceis de catalogar, filmes que recusam qualquer ideia de rótulo e que não se encaixam em nenhuma pré-definição. Aftersun é um desses filmes, uma pequena obra delicada e frágil, que parece que está sempre prestes a desvanecer-se à nossa frente. Se fossemos obrigados a descrever o filme ou se trabalhássemos no clube de vídeo e tivéssemos que decidir o género onde o colocar para aluguer escolheria a opção “Home movies”. O quê? Como assim não é um sub-género do cinema? Após Aftersun passou certamente a ser.
Aftersun é a historia de umas férias de verão entre pai (Paul Mescal) e filha (Frankie Corio), num resort na Turquia. E, tal como o home movie que ambos vão fazendo com a camcorder que levam na bagagem, Aftersun obedece a essa lógica de filme caseiro: pequenas vinhetas filmadas aqui e ali, de forma circunstancial, que não significam propriamente nada quando isoladas, mas que, quando vistas em conjunto, acabam por ter muito a dizer. Ou seja, é um daqueles filmes que parece que nunca se está a passar nada, mas que, quando acaba, tudo está completamente diferente. Inclusive em nós.
É assim que vamos descobrindo, aos poucos, coisas sobre o casal de protagonistas. Algumas são factos mais ou menos básicos e biográficos. Por exemplo, prova a) Sophie, a filha, vive com a mãe desde o divórcio dos pais; ou prova b) Calum, o pai, parece ter sempre um negócio na manga para abrir, que esse é que vai ser, esse é que lhe vai endireitar a vida. E depois existem outras ideias que vamos percebendo de forma mais ou menos indirecta. Por exemplo, a prova c) a saúde mental de Calum não parece ser o seu forte. Tudo isso influencia os dias que aqueles dois vão passando juntos, na piscina, nas refeições, no karaoke ou nas excursões organizadas pela própria agência de férias.
Aftersun é ainda um inesperado coming of age. Sophie está na idade em que começa não só a olhar para os rapazes, como também a ver como eles se comportam, porque quer ser como eles ou sentir-se incluída naqueles rituais adolescentes cheios de hormonas. Há, por isso, algumas cenas igualmente determinantes neste aspecto. Mas é particularmente na forma como utiliza a música, sempre de forma diegética, que a realizadora Charlotte Wells ganha o filme. A tal cena do karaoke, em que Sophie canta o Losing my religion dos REM, é uma delas; mas é no final, ao som do Under pressure, que vamos ouvir o clássico dos Queen com o David Bowie como nunca o tínhamos escutado antes.
Finalmente, há ainda a questão do tempo, outro tema que é trabalhado de forma mais ou menos subtil em Aftersun. É que existem analepses e prolepses ao longo de todo o filme, às vezes tratadas em simultâneo (como na última cena de Aftersun, que é um traveling circular belíssimo por duas realidades temporais distintas), com uma Sophie adulta (Celia Rowlson-Hall) que revê o home video das férias e é como se recuássemos no tempo com ela. Pode ser Aftersun um home video imersivo? Acho que é uma descrição acertada. Ou então é, pura e simplesmente, um McRoyal Deluxe. Talvez assim seja mais fácil de entender.
Título: Aftersun
Realizador: Charlotte Wells
Ano: 2022