Houve uma altura em que David O. Russell caiu nas boas graças de meio mundo e andava aí nas palmilhas de muito boa gente. Até havia quem lhe chamasse o último dos clássicos. E conseguiam dizer isso com cara séria, sem se rirem. Depois fez o Joy, a coisa esfriou um pouco e nunca mais ouvimos falar dele. Até que chegou de repente com Amesterdão, mais um filme coral com um elenco que parece uma lista de nomeados ao Oscar que foi um flop tão grande que acabou despejado numa plataforma de streaming qualquer.
Na verdade, não estava à espera que Amesterdão falhasse nas bilheteira. Nem tanto por David O. Russell, mas porque o filme é um neo noir, género que tem vindo a ter um renascimento gradual nos últimos tempos. Só este ano houve mais um episódio do Knives Out – Todos São Suspeitos, o Crime em Hollywood que parece querer começar uma nova série dentro do género e até o Decisão de Partir, com o neo-noir a galgar fronteiras até à Coreia do Sul. E. claro, o estilo exagerado de David O. Russell combina, à partida, com o molde do género: intrigas complicadas e personagens secundárias à barda.
Amesterdão baseia-se livremente num caso verídico que aconteceu no período entre guerras, nos Estados Unidos, em que um grupo de empresários tentou financiar um golpe de estado para colocar um ditador no poder, inspirados pelos moldes fascistas que começavam a vingar do outro lado do Atlântico, tanto em Itália como na Alemanha. Ou seja, Amesterdão não podia ser mais actual, com o crescimento cada vez mais visível da extrema-direita no mundo em geral e na América em particular. E, depois, o twist final: afinal a motivação daquela gente nem sequer era o poder, mas sim o dinheiro. Eis a enésima prova de que o capitalismo é a fonte de todo o mal do mundo e o inimigo número um de um futuro em harmonia. *introduzir imagem do capitão Kirk sarcasticamente surpreendido*
Christian Bale e John David Washington são então os dois protagonistas de Amesterdão, que vão ser envolvidos mais ou menos involuntariamente neste esquema e que lhe vão ter que colocar um ponto final. No entanto, são anti-heróis pouco ortodoxos, já que não têm nada de agentes da autoridade. Ambos são ex-veteranos, mas o primeiro é um médico que procura encontrar medicamentos novos que tratem das dores dos veteranos mutilados e macerados pela guerra (até diria que haveria aqui um piscar de olho às medicinas alternativas… alguém sabe se o David O. Russell é chalupa?) e o segundo é advogado. Os dois vão-se reunir a uma amiga de longa data (Margot Robbie), com quem passaram uma temporada inesquecível em Amesterdão – daí o título do filme, que tanto é uma madalena de Proust como é uma referência à Paris de Casablanca -, e que cuja família também está envolvida mais ou menos directamente em toda a conspiração que mencionei acima.
A trama é interessante, mas o problema é que David O. Russell dispara para todo o lado, numa óptica de acumulação, que vai sobrepondo personagens, sub-enredos e até truques estilísticos ou formais que muitas vezes nem sequer pertencem ao mesmo filme (como o longo flashback que conta o feliz encontro dos três amigos em Amesterdão). Russell tenta manter o tom ligeiro, com muito humor forçado, para que o complicado argumento flua e atira em todas as direcções (o racismo estrutural da sociedade americana, a desumanização da guerra, a corrupção e a perfídia do dinheiro…), mas a verdade é que Amesterdão vai sendo apenas um balão que enche, enche, enche, até rebentar. Há então o irmão e a cunhada de Margot Robbie (Rami Malek e Anya Taylor-Joy); há o sócio de John David Washington, Chris Rock; há o respeitado veterano que todos disputam o apoio, Robert De Niro; há uma breve Taylor Swift, que acaba debaixo das rodas de um carro; há Michael Shannon e Mike Mayers em modo Dupont e Dupont, que são uma espécie de comic relief; e há Zoe Saldana, que todos pensam que é portuguesa, mas não é. Aliás, até há fado na banda-sonora, mas Amesterdão passou tão despercebido nas bilheteiras que nem as habituais exaltações nacionalistas que são despertadas por estes fait divers cinematográficos vieram ao de cima.
No fundo, David O. Russell sempre foi um hoarder, que gosta de acumular personagens, situações e sub-enredos. Quem não se lembra de Golpada Americana? No entanto, esse filme tinha ao menos confiança e fazia as coisas em grande, sem medo de dar o peito às balas. Já Amesterdão dá sempre a ideia de avançar com cautelas em demasia, como se não tivesse bem a certeza do que estava a fazer. Por isso, quando chega ao desenlace final, com uma daquelas cenas à Scooby-Doo onde todos tiram a máscara e revelam quem verdadeiramente são, a cena demora uns bons 20 minutos, já que todos têm que explicar em longos monólogos detalhados o que se está a passar. Amesterdão é um desastre que só não é mais épico porque os seus actores o resguardam de um espalhanço mais espalhafatoso. Nem sei como é que me convenceram a encomendar um Cheeseburger.
Título: Amsterdam
Realizador: David O. Russell
Ano: 2022