Existem várias razões pelas quais Tenet nunca poderia ser um grande filme (atenção, escrevi grande e não bom de propósito), mas a principal chama-se Memento. É que havíamos conhecido Christopher Nolan precisamente com um filme que desconstruía a linearidade narrativa, mostrando-o de trás para a frente, num burilar metódico e quase obsessivo, que é muito mais interessante do que o gimmick de Tenet. Não é que tenha sido a primeira vez que vimos algo parecido (alguém mencionou Anatomia de uma Traição?), mas Memento dá 15 a 0 a Tenet.
Mas comecemos pelo início (que, neste caso, é o final). Memento é a história de Guy Pearce, um tipo que ficou tipo a Dory, sem conseguir criar memórias a curto prazo, depois do ataque de um invasor que lhe violou e matou a mulher. Por isso, Pearce desenvolveu um sistema, metódico e obsessivo (como o próprio cinema de Nolan), para não só se orientar sozinho no dia-a-dia, mas também para perseguir, encontrar e matar esse atacante. O sistema consiste em dois processos fundamentais, a saber: a) tatuar no corpo todos os factos que vai descobrindo e os quais não pode nunca esquecer (fazendo com que esteja ainda mais escrito do que o Robert de Niro, em O Cabo de Medo); e b) andar sempre com uma polaroid e uma esferográfica, para ir fotografando e apontando informação útil: o automóvel, pessoas que conhece, etc.
Memento começa precisamente no momento que Guy Pearce mata Joe Pantoliano, que consta ser o tal assassino que ele busca incessantemente, e a partir daí regressamos atrás para percebermos como chegámos até ali. Ou seja, uma estrutura narrativa clássica do thriller policial, desde… sempre? Não, desde Crepúsculo dos Deuses. Contudo, em Memento não estamos a falar de flashbacks. Cristopher Nolan recua literalmente no tempo, de trás para a frente, montando o filme às arrecuas. Aliás, existem versões em dvd que têm, como easter egg, o filme montado por ordem cronológica.
Isso significa que demoramos um pouco até nos habituarmos ao processo. É como quando entramos num barco e o nosso corpo necessita de se acomodar ao balanço das ondas. No início pode ser um pouco confuso e desorientado, mas assim que assentamos, a viagem passa a ser altamente agradável. Além disso, Nolan dá-nos ainda uma pequena ajuda. É que, a entremear as cenas, vão surgindo outras, de uma outra realidade temporal, que servem de ferramenta para nos auxiliar a situar, já que nos vai fornecendo informações fundamentais. E estas cenas são apresentadas a preto e branco, que tem uma dupla função: a de identificar claramente quais são os momentos que não pertencem directamente à trama que estamos a seguir; e prestar tributo ao film noir, género que acaba por ser a base de Memento.
Seria de esperar que um filme do qual sabemos o fim da história não teria grande interesse. Tomemos um filme ao acaso e olhemos para ele de trás para a frente. O Exorcista, por exemplo: uma miúda sente-se mal, vomita a sopa de ervilhas e sente-se melhor. Ou então a trilogia de O Senhor dos Anéis: um tipo atira um anel para um vulcão e vai para casa. Contudo, Memento consegue manter exactamente o mesmo interesse ao longo de toda a sua duração, com novas personagens que vão surgindo (destaque para Carrie-Anne Moss) e cambalhotas à frente e à retaguarda. Aliás, o filme até tem um twist daqueles espertalhões, que não só ajuda a rematar as pontas soltas, como nos coloca a dizer para os próprios botões sim senhores. M. Night Shyamalan ficou satisfeito.
Tudo isso só é possível graças ao tal argumento limado até ao mais ínfimo pormenor por Cristopher Nolan. Aliás, é um trabalho tão meticuloso que, por vezes, até se pode sobrepor ao próprio filme em si, como se as personagens e as acções só existissem em função desse truque. É por isso que Memento é um daqueles filmes cuja primeira visualização funciona sempre melhor e sem igual. Mesmo assim, resiste melhor ao teste do tempo do que a maioria dos filmes com twists semelhantes. Ainda recentemente voltei a vê-lo e continuo sem vergonha de admitir que gosto dele como gosto de um Royale With Cheese.
Título: Memento
Realizador: Cristopher Nolan
Ano: 2000