Ai, os escandinavos, esse povo maravilhoso e perfeito, exemplo máximo da democracia, cidadania e felicidade. Excepto quando se suicidam aos mil. Ou quando exigem que os refugiados entreguem À entrada do país todas as suas riquezas. Ou, ou, ou…
Na verdade, o cinema escandinavo sempre tratou de desmistificar essa ideia de perfeição, com uma longa tradição que vai de Ingmar Bergman a Lars Von Trier. É um espectro alargado, onde se inscrever várias variantes, entre elas entre Farta de Mim Mesma, nova radiografia à saúde mental e aos transtornos obsessivo-compulsivos.
Farta de Mim Mesma é a história de Signe (Kristine Kujath Thorp), uma jovem que sofre de um profundo complexo de vitalização e de necessidade de ser o centro das atenções. Ainda por cima, o namorado (Eirik Sæther) é um artista conceptual em ascensão e a sua fama em crescendo choca de frente com essa necessidade de afirmação. Por isso, enquanto de início isso se manifesta numa sucessão de mentiras compulsivas, mais ou menos inofensivas, rapidamente escala para uma espiral de auto-destruição, que inclui abusar de uma droga russa que lhe desfaz a pele, a transforma num homem-elefanta e, consequentemente, colocam os focos da comiseração pública sobre si.
Há uma cena fulcral logo no início de Farta de Mim Mesma, que tira logo o retrato completo a Signe. Depois de pedirem um vinho de 2 mil euros num restaurante finório, Signe e o namorado fogem sem pagar, perseguidos pelo empregado. Ela deixa-se ficar para trás e a decepção é palpável quando o empregado passa sem a reconhecer. É nesses momentos que Farta de Mim Mesma é melhor, com o realizador Kristoffer Borgli a atirar-nos com um humor negro sequíssimo à cara, tão desconfortável quanto inconveniente.
É que na exploração do distúrbio psicológico de Signe, Farta de Mim Mesma parece ficar-se muitas vezes pela rama e pelo descritivo. E isso é facilmente confundido e visto como exploração gratuita da saúde mental. Não é que um filme como A Pianista nos dê grandes respostas sobre estes temas, mas falta a Farta de Mim Mesma mais zonas cinzentas e uma maior exploração da personalidade da protagonista, para ser um pouco mais do que o McBacon. Seja como for, é mais um óptimo filme escandinavo sobre a complexidade da personalidade humana e também na reflexão crítica sobre a exposição pública actual, neste mundo de redes sociais, ecrãs e influencers, onde todos sentimos necessidade de nos expor e de nos resguardar publicamente em iguais doses.
Título: Syk Pike
Realizador: Kristoffer Borgli
Ano: 2022
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