| CRÍTICAS | Deixar o Mundo Para Trás

Desde a pandemia da covid-19 que os filmes-catástrofe passaram a ressoar de forma diferente cá dentro. Afinal, aquelas ameaças de grande escala deixaram de ser horrores mais ou menos distantes e passaram a ter perturbadores pontos de contacto com a realidade, que nos são familiares. E num filme como Deixar o Mundo Para Trás, que escarafuncha no psicológico e no medo perante o desconhecido, isso reverbera mais.

Em Deixar o Mundo Para Trás o fim da civilização apanha Julia Roberts, o marido Ethan Hawke e os dois filhos adolescentes, Charlie Evans e Farrah Mackenzie, de férias. Julia Roberts havia alugado um alojamento local isolado no campo para alguns dias longe do trabalho e de pessoas, mas logo na segunda noite as coisas começam a dar para o torto. Até porque Mahershala Ali e a filha Myha’la batem à porta às tantas da noite, apresentam-se como os reais proprietários do alojamento e pedem para passar lá a noite, assustados com o blackout que atingiu a cidade. Mas isto é um disaster movie ou um home invasion movie?

Esta é apenas uma das várias perguntas que Deixar o Mundo Para Trás levanta e que não vai necessariamente responder. Ou, pelo menos, de forma directa. É que, como estamos isolados no campo e a internet deixou de funcionar, não há grandes pistas. É certo que existem pontualmente algumas cenas impressionantes dignas da linhagem do filme-tragédia (um cargueiro que entra por uma praia adentro, um avião que se despenha ou um amontoado de Teslas com o auto-piloto a levarem-nos a chocarem uns com os outros, qual flautista de Hamelin) e vão havendo episódios regulares de bandos de animais que vêem à casa como que para os avisar de algo (veados, flamingos…), mas as possibilidades são sempre várias: um ataque terrorista dos iranianos? Ou dos coreanos? Um ciber-ataque lançado por uns miúdos nas Filipinas? Ou o grande reset que os maluquinhos das conspirações tanto falam? É que nem o vizinho survivalist habituado a estas coisas (Kevin Bacon numa curta participação especial) parece saber grande coisa.

No meio de tudo isto, aquelas seis personagens têm que lidar com os seus próprios problemas pessoais, ansiedades e inseguranças. É certo que todos os filme-catástrofe, uns de forma mais óbvia do que outros, são sobre a humanidade e como temos de viver em comunidade se queremos prosperar em harmonia, mas Deixar o Mundo Para Trás toma o caminho mais longo (e sinuoso) para nos explicar isso. E, inesperadamente, vai utilizar o Friends (aliás, as referências à cultura popular são mais ou menos regulares durante o filme) como metáfora para isso. E o final, que pode ser frustrante para muitos, é tão simples nessa conclusão que se torna pertinentemente inteligente.

O realizador Sam Esmail vai gerindo o suspense em lume brand, com um cinema estilizado (e muitas influências de David Fincher), uma escolha cuidada da banda-sonora (há quanto tempo não havia uma cena de gente a dançar, como a de Julia Roberts e Mahershala Ali?) e planos inesperados e desconcertastes, que servem tanto para nos gorar as expectativas como para nos desconcertar. Nem sempre Deixar o Mundo Para Trás é o filme sólido que queríamos que fosse, mas é uma óptima proposta de variação da fórmula do disaster movie. E às vezes isso é tudo o que basta para um McBacon.

Título: Leave the World Behind
Realizador: Sam Esmail
Ano: 2023

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *