Nos últimos anos, os realizadores franceses começaram a flirtar com o cinema de género, encontrando ali um meio termo entre o cinema de autor e aquilo que se convencionou chamar de cinema comercial. A coisa terá atingido o ponto caramelo ali por alturas da Palma d’Ouro de Julia Ducournau, com Titane, e não dá sinais de abrandar. E até um filme como Sob as Águas do Sena, um shark movie xungoso, convenceu uma actriz de prestígio, como Bérénice Bejo, para encabeçar o projecto.
Reino Animal é mais um desses títulos franceses que utiliza o cinema de género para falar de outras coisas. O cinema fantástico, mais propriamente o filme de super-heróis, é o ponto de partida desta proposta do realizador Thomas Cailley. Estamos num futuro hipotético e, numa cena de abertura que mistura fantástico com uma certa normalidade, ficamos a descobrir que há um vírus que transforma os humanos em animais antropormofizados. São uma espécie de mutantes, mas sem os super-poderes dos X-Men.
E, tal como nos filmes (e nos quadradinhos) dos pupilos do professor Xavier, esses seres fantásticos são utilizados para abordar outros temas: o racismo e a discriminação, que podem ser ainda declinados na questão dos refugiados, tudo tópicos bastante pertinentes na França em particular (e na Europa e no resto do mundo ocidental em particular). François (Romain Durais) e Emile (Paul Kircher) são pai e filho que procuram recomeçar a vida numa nova cidade, para onde se mudaram para ficarem mais perto da mãe, que foi institucionalizada depois de se transformar num bicho e de ter atacado o filho. Por um lado, há a ostracização da sociedade e, por outro, há o trauma da situação e como lidar com aquela… doença.
Nos últimos tempos, quando se fala em vírus vem automaticamente à lembrança a recente emergência sanitária provocada pelo novo coronavirus. E Reino Animal não é excepção, com as quarentenas e o afastamento social. Contudo, não é por aí que o filme de Thomas Cailley segue. E apesar de haver um tipo transformado em pássaro e uma miúda em lagarto, também não é propriamente o fantástico e as criaturas antropormofizadas que interessam a Reino Animal. Até porque quando Emile começa a mostrar sinais que também se está a transformar, o trauma ganha outra dimensão.
Reino Animal é assim também um coming of age, em que esse vírus transformador pode ser visto como uma metáfora para a puberdade e como essa fase é complicada para as relações entre pais e filhos. De certa forma, também era isso que Julia Ducournau fazia no seu Raw, utilizando igualmente o filme de género para abordar temas semelhantes, só que com canibalismo em vez de criaturas animalescas. Reino Animal é uma óptima derivação do filme de heróis, que vai desembocar em algo totalmente diferente e novo, o que faz com que seja um tão eficaz, quanto inesperado McBacon.
Título: Le Règne Animal
Realizador: Thomas Cailley
Ano: 2023