Visto ao longe, Emilia Pérez não poderia parecer mais aleatório. Um realizador francês, Jacques Audiard, decide fazer um filme todo em língua espanhola, apesar de não saber nada de castelhano, com uma trama mexicana, criando o México nos estúdios de Paris e convocando uma série de actrizes latinas (ou de ascendência latina). Mas depois aproximamo-nos e vemos que tudo faz sentido. Emilia Pérez é um melodrama de faca e alguidar que, em vez de ir beber ao cinema de Douglas Sirk (como todos os melodramas fazem actualmente), vai directamente à fonte mais prolífera: a da telenovela sul-americana. E fa-lo em formato de musical, assumindo assim de braços abertos todo o artificialismo e exagero do dispositivo.
Emilia Pérez começa então por ser a história de uma jovem advogada, Rita (Zoe Saldana), que apesar de todo o potencial, parece continuar estagnada numa carreira de subordinação: ao patrão, ao patriarcado da classe e à influência dos autocratas, traficantes e corruptos que controlam verdadeiramente o país. Até que surge uma oportunidade no horizonte. O violento líder do mais poderoso cartel mexicano, Manitas del Monte, contrata-a para uma demanda secreta: encontrar um cirurgião que complete a sua transição para mulher e ajuda-lo a começar uma vida nova, totalmente incógnito, ao mesmo tempo que forja a sua morte e instala a família (Selena Gomez é a esposa) na Suíça sem desconfiar de nada.
Manitas del Monte transforma-se então na Emilia Pérez do título, apesar de dividir todo o protagonismo do filme com Zoe Saldana. Manitas del Monte e Emilia Pérez são interpretados pela mesma actriz, a trans Karla Sofía Gascón, que contribui para que este seja um filme queer, no sentido do género que representa a comunidade LGBTQI+ e de todas as identidades não-normativas. Mas há muito mais por vir, até porque este é, acima de tudo, um filme de dualidades. Não só a dicotomia entre o masculino e o feminino de Emilia Pérez, representada pela sua transição, mas também a relação de amor e ódio de Saldana pelo seu país natal, por exemplo.
O filme dá então um pequeno salto de 4 anos e Emilia Pérez modifica-se, entrando em cena uma nova contradição: a do passado de crime que volta para atormentar a nova vida de Emilia Pérez após o seu renascimento. Isso leva-a a abraçar uma vida de filantropia, com a criação de uma ONG que procura encontrar os milhares de desaparecidos do país, vítimas do narcotráfico. A redenção chegará (ou não) através da entrada em cena de Epifania (Adriana Paz) – o nome não é coincidência -, que se tornará amante de Emila.
Ao mesmo tempo, esta última procurará reconectar-se com os seus filhos, trazendo-os juntamente com Selena Gomez para viver consigo de novo no México, apresentando-se como uma prima distante do antigo traficante. Contudo, vai ter dificuldades em lidar com o facto de Selena Gomez querer continuar com a sua vida…
Emilia Pérez tem assim todos os condimentos de uma autêntica novela mexicana – paixão, ciúme, morte… -, se bem que o que se destaca acaba por ser o musical. Como não? Afinal de contas, quando toda a gente desata a cantar sem motivo aparente é impossível não notar. É certo que não existem propriamente grandes coreografias, porque o modelo de musical de Jacques Audiard não é o espectáculo do music hall norte-americano, mas antes o barroquismo da ópera. Mesmo assim, Zoe Saldana ainda tem dois momentos musicais para brilhar, cantando e dançando e provando que não só consegue fazer ambos, como sabe também representar.
Emilia Pérez é um projecto ambicioso e nem sempre consegue manter os mesmos níveis de energia a que se propõe de início, além da sua segunda metade ser sempre claramente inferior à primeira. Contudo, é um filme original – quantas vezes se viu um musical-queer-mexicano-feito-por-um-francês? -, sem medo de arriscar e que, por isso, mesmo quando falha continua a saber a um McBacon.
Título: Emilia Pérez
Realizador: Jacques Audiard
Ano: 2024