
É difícil apanharmos nas salas de cinema filmes de cinematografias incomuns que não venham logo formatados para os festivais ocidentais, com aquele olhar etnográfico para estrangeiro ver. Além disso, também é difícil apanharmos filmes indianos que não sejam musicais saídos da máquina de produção brutal de Bollywood. Por isso, Tudo o que Imaginamos Como Luz é um dois em um, já que é um filme indiano que não mostra a Índia pela perspectiva exótica nem tem o selo de Bollywood.
Seja como for, Tudo o Que Imaginamos Como Luz tem sido uma coqueluche dos festivais internacionais, o que não deixa de ser um paradoxo. Em Cannes, onde uma produção indiana não estava em competição há mais de 30 anos, o filme da realizadora Payal Kapadia venceu inclusive o prémio do júri.
É certo que existem especificidades culturais em Tudo o Que Imaginamos Como Luz que fazem dele um filme indiano (especialmente as questões das castas e da religião, que são transversais e quase impossíveis de não mencionar), mas, no fundo, esta história tanto se podia passar ali como em qualquer outra cidade do mundo engolida pelo capitalismo voraz, que consome os trabalhadores, absorve as suas vidas juntamente com a sua força de trabalho e ainda se ri da forma como se equilibram precariamente no limiar da pobreza. Mas Tudo o Que Imaginamos Como Luz não é um filme de realismo social, pelo menos da forma consciente como o é o cinema de Ken Loach, por exemplo.

Tudo o Que Imaginamos Como Luz começa como um documentário nas ruas de Bombaim, com o testemunho de várias pessoas comuns, para depois se ir fixar em duas histórias específicas: a das enfermeiras e roomates, Prabha (Kani Kusruti) e Anu (Divya Prabha). A primeira tem um marido a trabalhar na Alemanha, que não vê há mais de 1 ano (e que, antes disso, também não viu muito mais, porque foi um casamento arranjado pelos pais), mas que a chegada de uma arrozeira anónima pelo correio a faz questionar se aquela ausência afinal não é assim tão ausente quanto isso. Já a segunda está apaixonada por m rapaz muçulmano, o que torna essa relação automaticamente proibida aos olhos da maioria da sociedade.
O grande trunfo do filme de Payal Kapadia é como este não se parece com o que estamos habituados do cinema indiano. Ou, pelo menos, com nenhum filme dos que estávamos à espera. Por exemplo, a forma como Tudo o Que Imaginamos Como Luz salta do documentário para a ficção, diluindo as fronteiras entre um e outro, remete-nos para Miguel Gomes e coisas como Aquele Querido Mês de Agosto. Mas de forma mais personalizada. O cinema de Kapadia é extremamente moderno e consegue ser, simultaneamente, global e local. O melhor exemplo é a forma como incorpora os telemóveis e as sms na história, de forma tão simples quanto eficaz.
Tudo o Que Imaginamos Como Luz é um filme muito simples, um cinema extremamente cândido, que dá espaço aos seus actores para respirarem, mas também à própria cidade de Bombaim para se assumir ela própria como uma importante personagem da história. E, para não cair no estereótipo, vou evitar referir qualquer piada com a composição deste McChicken.

Título: All We Imagine As Light
Realizador: Payal Kapadia
Ano: 2024