Se vamos ver um documentário de Ulrich Seidl, já sabemos que vai ser uma experiência com algo de perturbador. Afinal de contas, o realizador austríaco tem andado a perscrutar o íntimo dos conterrâneos com aquele cinismo e naturalidade que tem marcado o recente cinema da Áustria (olá Michael Haneke, como estás?). Aliás, é essa mesma naturalidade que nos assusta. É que as pessoas dos seus documentários existem mesmo!
Safari, o seu mais recente trabalho, é um documentário sobre o turismo de caça que alimenta um importante negócio na Namíbia. Seidl viaja para África, mais concretamente para a fazenda de um emigrante alemão que promove esse tipo de caçadas turísticas, e segue e entrevista um par de famílias germânicas que lá estão hospedadas com o desejo de matarem uma girafa, uma zebra ou o que quer que seja.
Com aquele seu estilo muito próprio, Seidl aproveita qualquer situação para dar asas ao seu formalismo rígido. O austríaco diverte-se sobretudo a montar os cenários das suas entrevistas, em cenários tão kitsch e fantasiosos que só podem ser reais: salas cheias de troféus de caça, cortinados com padrões de chita e outras aberrações decorativas. Visualmente, Safari é o que de mais perto vamos ver de um filme de Wes Anderson(!) até… ao próximo filme de Wes Anderson.
Seidl filma tudo de forma quase passiva, limitando-se a observar as cenas de caçada como se fosse o Sir David Attenborough escondido nas silvas, a mostrar-nos aquelas espécies perigosas no seu habitat natural (e na plena posse de toda a sua parvoíce). É um realismo nu e cru, que despe aqueles protagonistas até ao osso. E Seidl (ab)usa desse realismo quase antropológico quando filma, do princípio ao fim, todo o processo de esfolamento de uma zebra e de um antílope, em autêntico (e talvez dispensável) modo de torture porn. É que Safari não é um documentário apenas sobre aqueles turistas-caçadores, mas sobre todo o processo de caça.
No entanto, é nos momentos em que o documentário dá voz aos seus personagens que a coisa ganha redobrado interesse. Primeiro, porque mais uma vez é assustador ver que aquelas pessoas existem mesmo, muitas vezes criando argumentos para justificarem os seus próprios actos (como a senhora que se recusa matar leões, porque existem poucos, mas que dizima todas as outras espécies de sorriso nos lábios, por exemplo), ou assumindo-se como a espécie dominante na cadeia alimentar. Mas depois rematam todas estas justificações com fotografias ensaiadas junto às presas mortas e todos esses argumentos ruem como castelos de cartas perante tamanha prepotência.
Safari é um documentário mais perturbador do que todos os filmes de terror que vão ver este ano. É, provavelmente, gráfico demais. Talvez. Mas não deixa de ser um excelente registo documental da vida selvagem, que documenta a espécie humana a expressar o seu mais íntimo espírito selvagem. Não se recomenda a ingestão do McBacon antes da visualização do filme.Título: Safari
Realizador: Ulrich Seidl
Ano: 2016