Depois de ter deixado de ser o eterno ignorado pela Academia, tendo sido curiosamente reconhecido com um Oscar por aquele que é provavelmente o seu pior filme (sim, estou a falar de O Lobo de Wall Street), Martin Scorsese pôde finalmente dedicar-se um dos seus projectos de estimação: Silêncio, a adaptação do romance homónimo do japonês Shûsaku Endô. Há trinta anos que o norte-americano queria fazer o filme, mas só agora teve tempo, dinheiro e liberdade criativa para tal. No entanto, apesar de um filme de Scorsese se chamar Silêncio ser como o Kusturica fazer um filme sem ciganos ou o Tim Burton fazer qualquer coisa sem personagens bizarras (e sem o Johnny Depp), este não é um corte tão radical com a sua obra como poderá parecer à primeira vista. Afinal de contas, a religião (ou melhor, a fé) sempre esteve na sua filmografia (olá A Última Tentação de Cristo, olá Kundun).
No fundo, Silêncio e A Última Tentação de Cristo até são filmes muito semelhantes, como as duas faces de uma mesma moeda. Em Silêncio, existem dois missionários portugueses (Andrew Garfield e Adam Driver) que vão para o Japão, durante a grande purga cristã, tentar encontrar o seu mentor, Liam Neeson, que supostamente apostatou, e a sua crença e determinação vão ser colocados à prova. Em A Última Tentação de Cristo, Jesus era um homem normal, como nós, longe do super-homem de Nietzsche, com as mesmas dúvidas existenciais que os comuns dos mortais, que veria o seu amor ao Pai ser colocado em causa.
Durante a reunificação nipónica, o Japão proibiu o cristianismo e expulsou todos os jesuítas e objectos cristãos. Por isso, a demanda de Garfield e Driver em terras para lá do sol posto – que tem tanto de demanda pessoal quanto de espiritual – é altamente arriscada pelo simples facto de estarem ali. Silêncio é quase como um filme-sobrevivência, que leva aqueles dois padres ao limite da sua humanidade, da sua fé e da sua crença, num paralelismo quase crístico (daí que os cristãos japoneses sintam no sacrifício e na culpa, esse sentimento tão cristão, uma espécie de legitimação), estando para o cristianismo assim como Samsara está para o budismo. No entanto, o filme é tanto sobre a religião cristã como sobre outra qualquer religião.
A provação é então grande e há crucificações, privações duras e outras torturas duras, que aguentamos com os padres portugueses, especialmente Andrew Garfield, que assume a posição central da trama até pela sua condição de narrador. No entanto, a maior privação é a de ver um filme de Martin Scorsese sem músicas, eles que são quase telediscos, e que aqui se obriga a falar apenas e só quando necessário, optando inclusive pelo silêncio muitas vezes. É um filme que também é um desafio comercial, numa era em que os filmes têm subentendido uma regra de que, para serem vistos, têm que soar cada vez mais alto e piscar cada vez mais brilhante.
Com uma fotografia irrepreensível, Silêncio acaba por se espalhar ao comprido no último quarto de hora, quando entra em cena um novo narrador, caído do céu por não ter unhas. Aquele quarto de hora a mais é claramente dispensável, muito mais nocivo para o filme do que o miscast de Andrew Garfield (que não se porta assim tão mal quanto a internet o anda a pintar). Silêncio não será definitivamente a obra-prima de Scorsese, mas é claramente melhor do que muita das coisas recentes que ele tem feito ultimamente (alguém mencionou Shutter Island ou A Invenção de Hugo?). E dá sempre um gostinho especial ver um filme de Hollywood com portugueses e tantas referências a nós, mesmo que esteja nas entrelinhas o nosso legado colonizador. Quando terminar aqui o McBacon prometo que vou ver a outra adaptação do livro de Endô (esta).Título: Silence
Realizador: Martin Scorsese
Ano: 2016