O que têm em comum James Baldwin, Martin Luther King, Medgar Evers e Malcolm X? Fácil. Todos eles foram, à sua maneira, símbolos fundamentais do negro norte-americano (e, consequentemente, do negro no mundo ocidental) e da luta pelos seus direitos. A diferença entre eles é que apenas o primeiro não morreu precocemente, uma vez que os outros três acabaram por ser assassinados.
Baldwin, uma das vozes da literatura norte-americana mais pertinentes e um dos porta-vozes oficiais da América negra, propôs-se em tempos em reescrever essa história a partir desses três amigos: King, Malcolm e Evers. O manuscrito nunca foi terminado e não passou de cerca de três dezenas de anotações e notas soltas. Contudo, décadas depois, o haitiano Raoul Peck agarrou nesse material e transformou-o num documentário, chamando para voz-off o todo-poderosos Samuel L. Jackson (ou era ele ou era Morgan Freeman, não podia ser mais ninguém).
Se tem o nome de Peck associado já sabemos que vai haver uma agenda política, mas neste caso isso não só é assumido como é a própria premissa do filme. Com uma capacidade de auto-análise altamente perspicaz, Baldwin reflecte sobre a sociedade norte-americana, construída sobre vários pilares duvidosos, sendo um deles o racismo. E para quem acha que o pior já passou, basta ver as imagens mais ou menos recentes que Raoul Peck vai repescar, seja aquele triste espancamento de Rodney King, sejam os actuais casos que levaram ao movimento #BlackLivesMatter. A história repete-se, é circular e sabemo-lo, não podemos fazer nada para o contrariar. Mas, infelizmente, parece que apenas as partes más é que andam às voltas.
Portanto, se o texto de James Baldwin é a principal força motriz de Eu Não Sou o teu Negro, cabe a Raoul Peck marcar o ritmo, com um trabalho de edição notável. Com apenas meia dúzia de imagens de arquivo para usar (uma ou outra foto e um par de entrevistas ou found footage fugidia), o realizador haitiano vai mexer no arquivo cinematográfico de Hollywood (um dos poucos legados verdadeiramente norte-americanos), na cultura popular e em imagens reais de noticiários para ilustrar o discurso, seja de forma literal (como quando Baldwin faz uma metáfora entre a Doris Day e o Ray Charles, ou seja, entre a América branca em que tudo é possível e a América negra segregada e de sobrevivência a pulso) seja de forma simbólica.
Há uma parte em que James Baldwin explica que o negro só se apercebe do problema da cor quando, a determinada altura da sua vida, olha ao espelho e percebe que é preto. Eu Não Sou o Teu Negro é precisamente isso: é um espelho que Raoul Peck agarra e coloca à nossa frente. E ao olharmos para ele somos obrigados a confronta-lo e a pensar finalmente em coisas que nunca pensámos ou que fingimos nunca pensar. E o McRoyal Deluxe contabiliza já essa mensagem nas entrelinhas, que infelizmente volta a ser pertinente, demasiado pertinente.Título: I Am Not Your Negro
Realizador: Raoul Peck
Ano: 2016