Para quem se lembra de Abril Despedaçado, o filme que lançou Rodrigo Santoro internacionalmente, o western brasileiro não é propriamente uma surpresa. Afinal de contas, o Sertão da primeira metade do século passado e o antigo Oeste Selvagem não são muito diferentes: os caubóis americanos e os boiadeiros sertanejos são equivalentes, a paisagem rasteira, seca e árida é semelhante e ambos tiveram a sua quota parte de bandidagem e de conflitos resolvidos à lei da bala. Apenas a música é diferente: a folk americana é bem melhor que o forró sertanejo.
O Matador, realizado por Marcelo Galvão, é um western sertanejo que conta a história de Cabeleira (Diogo Morgado), o mais mortífero dos matadores, ou seja, assassinos a soldo, do Sertão dos anos 40. Cabeleira é-nos introduzido em tempo real por um tipo que, ao interpelar acidentalmente dois bandidos no meio do mato, é obrigado por estes a entrete-los com uma história.
O homem, qual Xerazade, conta então a história de como Cabeleira foi abandonado na mata quando bebé para morrer pelos pais que não tinham dinheiro para o alimentar e acabou criado por outro matador, Sete Orelhas (Deto Montenegro), no meio do campo, como um selvagem. Isso tornam-no rude, bruto e violento, ou seja, o matador ideal para Monsieur Blanchard (Ettine Chicot) e a sua esposa (Maria de Medeiros), os ricaços do vilarejo local, que mandam despachar todos os fazendeiros que não aceitam vender-lhes as suas terras. Imaginem que a Nell tinha sido descoberta no mato pelo Ichi, The Killer, e teríamos Cabeleira!
O Matador é um western mais próximo da sua vertente spaghetti do que do molde norte-americano, com a sua história de violência, que inclui fuzilamentos a sangue frio, violações e muita misoginia. Esta violência seca e estilizada, aliada a algumas personagens bizarras (como o tradutor do francês Mounsieur Blanchard que traduz tudo por… gestos e gritinhos, como o intérprete de língua gestual do memorial do Nelson Mandela), faz com que O Matador pareça que o realizador teve uma dieta cinematográfica rigorosa de Corbucci, Peckinpah e Tarantino, toda ao mesmo tempo. Por vezes, a história é exagerada, mas não nos podemos esquecer que estamos a ouvir um relato. E, como já diz o adágio, na tradição oral quem conta um conto acrescenta sempre um ponto. Não é por acaso que, em Desperado, Steve Buscemi ia sempre à frente introduzir a lenda do marachi enorme e brutamontes, para que a reputação o precedesse.
O Matador mergulha no Sertão e na sua cultura de tal forma que precisamos ver o filme com legendas, porque o sotaque é cerrado e o dialecto por vezes esquisito. Por isso, num filme tão brasileiro como este, não se percebe muito bem porque foi um português fazer de protagonista. No entanto, há que se tirar o chapéu a Diogo Morgado, que é bem capaz de ter aqui um dos seus melhores papéis até há data. Este é um Diogo Morgado que não tem nada a ver com o hot Jesus, em autêntico modo feio, porco e mau. E, apesar de ajudar o facto de apenas comunicar por grunhidos e meias palavras, o seu sotaque sertanejo é convincente. Quem também anda por lá é outra portuguesa, Maria de Medeiros, novamente a fazer de francesa e, adivinhem, a fazer de dona do bordel local.
Há apenas uma altura, já perto de entrar no último acto, que O Matador parece dar um salto, como se tivesse ficado qualquer coisa perdida no chão da sala de edição. Mas nada disso belisca a simpatia e o McRoyal Deluxe deste agreste e violento western brasileiro, que é a primeira produção brasileira do Netflix.Título: O Matador
Realizador: Marcelo Galvão
Ano: 2017