Há coisas que me fazem espécie, coisas que até são, aparentemente, insignificantes, mas que se alojam debaixo da epiderme de tal maneira que causam desconforto e incómodo permanente. É como a mancha na parede da canção dos Mão Morta, Tu Disseste, que vai “alastrando e tomando conta do corpo”.
Uma dessas coisas é, precisamente, o desrespeito que há pelos filmes de zombies actualmente. Apesar de ter sido, durante muito tempo, um sub-género menor, o zombie flick sempre teve uma série de regras oficiosas que toda a gente seguia para contar coisas sérias a brincar. Por exemplo, nunca se referia a a palavra zombie num filme de zombies. E estes sempre foram criaturas que não corriam, cambaleando de braços esticados, porque a) são mortos-vivos e b) para manter uma distância de segurança entre eles.
Neste século XXI apareceram então os zombies que correm. Eu até gosto dessa varialção voraz, do WWZ: Guerra Mundial ou do Train to Busan, porque os vejo como um outro tipo de criatura alternativo. Mas os zombies de Os Famintos – pequeno filme que tem criado algum frisson nos festivais fantásticos, incluindo o Fantasporto, e que foi logo adquirido pelo Netflix -, são algo de intermédio. São mortos-vivos mal caracterizados, que correm e gritam. Gritam muito!
Os Famintos é um filme quase atmosférico, ambientado no Canadá rural, que tira proveito dessas longas paisagens e silêncios prolongados, que muitas vezes só são quebrados pelos gritos das criaturas. E quase como se Terrence Mallick tivesse feito um zombie flick. É neste cenário que se desenvolve as narrativas de diferentes personagens que depois se cruzam, tudo sem grandes conversas ou explicações. Aliás, explicações é coisa que, em geral, não existem, porque também nunca é dada qualquer pista para desvendar aquela epidemia.
Os Famintos é assim um filme quase sensorial, que também encontra uma certa similaridade com a sensibilidade de Monstros, o filme de monstros sem monstros de Gareth Edwards. Por isso, não se percebem algumas opções mais duvidosas, tipo a matança do porco no final, que parece pertencer a outro filme. Os Famintos não é propriamente famoso, mas o Cheeseburger premeia o inconformismo e a tentativa de se fazer um zombie flick algo diferente.
Título: Les Affamés
Realizador: Robin Aubert
Ano: 2017