Existem filmes que demonstram uma cinefilia tão pura e honesta, que se tornam verdadeiros hinos à sétima arte e manifestos de gratidão de enorme nostalgia. Não falo, obviamente, dos pastiches do Tarantino, mas antes de homenagens como Os Sonhadores, de Bertolucci, ou mesmo de O Último Grande Herói, apesar do tom menos sério. Claro que destes todos, o exemplo máximo é Cinema Paraíso, ou não fosse ele um requiem às salas de cinema tradicionais.
O Cinema Paraíso do título é uma antiga sala de uma aldeia da Sicília, nos anos 50. Alfredo (Philippe Noiret no papel do avô que todos queríamos ter ou que queremos acreditar que tivemos) era o projeccionista e Totó (Salvatore Cascio, fantástico e expressivo miúdo) cresceu sob a sua alçada, despontando para a vida ao mesmo tempo que se apaixonava pelos filmes que passavam (e aos quais o padre da aldeia censurava toda e qualquer cena que tivesse pornografia – leia-se beijos). Cinema Paraíso, o filme, começa 50 anos depois, com o anúncio da morte de Alfredo, que vai fazer o Totó adulto (Jacques Perrin) rever e avaliar a sua vida em regime flashback.
Começamos então na Itália conservadora e rural, onde a sala de cinema era um escape ao regime e uma ponte para novos mundos, onde a população – ricos, pobres, novos, velhos, sãos e malucos – se reunia todas as noites para, em conjunto, apupar os índios dos filmes de cowboys, aplaudirem as matinés de aventuras ou chorarem juntos nos melodramas italianos. Cinema Paraíso é um filho do neorealismo italiano e podia ser um primo directo de Fellini, nomeadamente de Amarcord, com o retrato daquela aldeia siciliana e, consequentemente, de toda a Itália, com as suas personagens típicas e a identidade italiana bem vincada, que começam por ser arquétipos, mas que ganham espessura ao longo do filme até se tornarem verdadeiramente nossos amigos.
É naquela sala de cinema, com os filmes em paralelo, que Totó dá o salto para a adolescência (Marco Leonardi), depois de um golpe trágico do destino. E nesta segunda parte, Cinema Paraíso emula-se a si próprio, projectando o próprio cinema na história do jovem Totó e do seu mentor Alfredo. Neste épico de duas horas (três na versão extendida), o filme dá ainda o passo seguinte até à passagem para a fase adulta de Totó, ao abandonar a aldeia natal para a grande cidade de Roma, onde se vai tornar num realizador de sucesso e cortar o cordão umbilical com o passado.
Mais do que um épico familiar e um ritual de transição da fase adulta, Cinema Paraíso é ainda extremamente simbólico – a cabeça de leão por onde são projectados os filmes, peça essencial na história, corporiza toda a força daquelas imagens num só objecto -, fazendo um tributo sentido à sétima arte, que serve espelha e reflecte a vida de toda a aquela aldeia siciliana e, consequentemente, da Itália. Além disso, há ainda a banda-sonora do mestre Ennio Morricone e um sentimentalismo romântico, mas nada piegas, de Giuseppe Tornatore, que nos faz termos verdadeiramente saudades daqueles tempos sem nunca o termos vivido.
Cinema Paraíso é uma carta de amor ao cinema. E aqui, neste imodesto antro cinematográfico, as cartas de amor são servidas como guardanapos de Royales With Cheese.
Título: Nuovo Cinema Paradiso
Realizador: Giuseppe Tornatore
Ano: 1988