Uma vez atravessei a fronteira Belize-México. Quando saí do Belize carimbaram-me, como deviam, o passaporte para me autorizar a saída. Daí a uns metros, tendo de passar no controlo fronteiriço do México, voltei a apresentar o passaporte para confirmarem que havia sido carimbado e porem o deles. Chego-me ao pé do guarda, abro o passaporte na página certa, ele pergunta pelo carimbo e eu aponto com o dedo e digo “está aqui!” no meu melhor sotaque castelhano. O senhor olha directamente para o carimbo e diz a maus modos “não estou a ver nada”. Eu, inocente, volto a apontar com o dedito e até faço um circulozinho à volta e repito com um sorriso “está aqui!”. Ele começa a folhear o passaporte para trás e para a frente enquanto repete “não estou a ver nada!”. Foi uma troca de palavras assustadora q.b. que, para vos poupar a uma longa história, acabou comigo vivinho da silva a ver a porcaria do The Hunger Games: Os Jogos da Fome num cinema qualquer na localidade de Chetumal.
Aperceber-me de que não tinha de haver qualquer nexo de causalidade entre a realidade óbvia e as acções das pessoas foi uma espécie de epifania. O carimbo estava ali mesmo, caramba!, mas bastava o senhor continuar a repetir que não estava a ver nada para a realidade evidente se tornar absolutamente irrelevante. Isto é coisa a que, na era Trump, já estamos habituados. Mas falo-vos de um período de inocência em que a ideia do senhor vir a ser presidente era ainda uma boa chalaça. Agora imaginem que em vez de um guarda fronteiriço à caça de uns dólares era todo o sistema de justiça dos EUA. E agora imaginem que em vez se disputar a presença ou não de um carimbo se disputava a vossa responsabilidade no brutal homicídio da pessoa que mais amam neste mundo.
The Staircase faz um retrato de um tal caso. Uma noite, Michael Peterson liga para o número de emergência e diz, no meio de muito choro, que a sua esposa caiu pelas escadas abaixo. É o próprio Peterson que convida uma equipa a documentar todo o processo, o que nos dá um acesso privilegiado a todos os recantos e nos permite acompanhar o que acontece a seguir.
E o que acontece a seguir é um homem rico gastar tudo o que tem para provar uma inocência que vai parecendo cada vez mais evidente mas que acaba a cumprir pena depois de um julgamento verdadeiramente surreal. Não perco muito tempo a explicar os contornos do caso mas direi o seguinte: nunca se sabe verdadeiramente se Peterson é verdadeiramente culpado ou inocente (nem nunca se virá a saber), mas todos os indícios entram de tal forma pelos olhos adentro que o veredicto de “não culpado” parece inevitável. Outra coisa seria uma bizarria, uma injustiça. Este documentário documenta essa bizarria e essa injustiça.
Não é que a série documental valha pelas suas qualidades intrínsecas. Há ali pelo menos 3 ou 4 horas a mais de documentário (coisa recorrente no meio desta praga que são as séries documentais) e dá a ideia de que o mesmíssimo material poderia ser muito mais bem trabalhado. Ainda assim, o material é de tal forma forte que, só por isso, vale muito a pena ver este The Staircase. Até porque, graças ao Netflix, a série original de 2004 pode ser actualizada com novos desenvolvimentos. É possivelmente porque Peterson tem tudo para não se gostar dele que esta série funciona tão bem. E chegamos ao fim com a espinha arrepiada a pensar em quantos Petersons haverá por aí. Por isso, se der para o espectador pensar uns segundos nos nossos sistemas de justiça, como se diz na sueca, já não é rapada.
*por Diogo Augusto