Começamos finalmente a conseguir ver para lá da espuma da rebentação e perceber um padrão nas produções próprias da Netflix. Ao fim deste tempo todo, acho que já é seguro dizer com segurança que, da Netflix, podemos esperar quatro coisas: muito lixo, bons documentários, crime series e ficção-científica.
Não é que os filmes sci-fi da Netflix até ao momento sejam todos espectaculares (antes pelo contrário, até há muita treta por ali), mas ao menos tornou-se num espaço seguro em que os autores sabem que têm liberdade para experimentarem dentro do género. Até porque não estamos a falar de uma ficção-científica de criaturas e alienígenas verdes com antenas; são antes filmes que dão prioridade às ideias e que utilizam o futuro para questionar e reflectir sobre o presente.
No fundo, é uma ficção-científica que viu uma porta aberta, deixada por Ex-Machina, e que aproveitou para entrar. E I Am Mother é mais um título para colocar nesta colecção: um filme relativamente modesto, em que a palavra tem o privilégio em detrimento do CGI e de qualquer masturbação digital, se bem que há um robot bem catita no centro da questão. Mas já lá vamos.
Estamos então no futuro, numa base deserto e bem asséptica, habitada apenas por um andróide e milhares de embriões. Lá fora, um holocausto levou ao fim da civilização e, agora, a única esperança para a Humanidade está dentro daquelas paredes. O andróide descongela então um embrião e uma menina nasce. Ela é a Filha (Clara Rugaard) e o andróide a Mãe, assim mesmo, sem nomes próprios, porque tudo é uma alegoria de arquétipos bíblicos (não é por acaso que o único próprio que vamos ouvir durante todo o filme seja Jacob).
Parece o Wall-E: a última humana, a crescer e a vaguear sozinha sem poder sair daquela base, educada por um andróide com instinto maternal. Chega quase a ser bucólico… até que alguém bate à porte. É Hillary Swank e, afinal, parece que há homens vivos lá fora. A Mãe diz que Swank andou a ver muito o Exterminador Implacável e esta diz que não, que são as máquinas que matam tudo lá fora. Cabe então à Filha decidir o que fazer: emancipar-se e matar o Pai, perdão, a Mãe; ou ouvir os conselhos desta e seguir as regras da boa educação?
I Am Mother é assim uma reflexão entre o livre arbítrio e o destino, ao mesmo tempo que explora a dicotomia entre Humanidade e Robótica. Enquanto isso, o realizador Grant Sputore filma tudo com o formalismo frio e a estética de anúncio publicitário que agora está muito na moda, em tons de azul metálico e avermelhados (Denis Villeneuve chamado à recepção). Não tem a perspicácia de Ex-Machina – que continua a ser o modelo para esta nova ficção-científica -, mas não deixa de ter o seu encanto e interesse.
Infelizmente, I Am Mother dá um tiro no pé já perto do final quando não resiste à tentação e sai para o mundo exterior. I Am Mother não consegue gerir a tensão e as expectativas e vem mesmo mostrar o que ninguém queria ver (apesar de todos pensarmos que o queria), apenas para dar forma ao twist. Depois percebe que não o devia ter feito, regressa à base e ensaia o volte-face. Twist e contra-twist, parece ser agora obrigatório para qualquer filme que se quer sério e inteligente. Ao menos, termina com um final que não é necessariamente feliz e só isso já ajuda a gostarmos mais outra vez do McChicken.
Título: I Am Mother
Realizador: Grant Sputore
Ano: 2019