| CRÍTICAS | Tristeza e Alegria na Vida das Girafas

Se lá fora o cinema para adultos de imaginário infanto-juvenil, meio surreal meio onírico, encontra eco num manancial de nomes que vão de Michel Gondry a Jean-Pierre Jeunet ou Miranda July, em Portugal esse tem sido um legado mais restrito, que se limita a dois nomes: o de Miguel Gomes e o de João Nicolau. A estes junta-se agora Tiago Guedes, graças a Tristeza e Alegria na Vida das Girafas, o seu segundo filme a estrear este ano (e num espaço de dois meses), depois de um hiato de mais de uma década.

Girafa (Maria Abreu) é uma menina de 10 anos, com um discurso demasiado articulado para a sua idade. Ela alerta logo no início do filme que a mãe, escritora, lhe havia dito um dia que se a pusesse num livro, os leitores não a iam achar credível. De facto, torna-se um bocadinho difícil habituar-nos à sua forma de falar, mas ao fim de 10 minutos já a coisa está interiorizada. Girafa vive sozinha com o pai (Miguel Borges), um actor que não consegue achar trabalho para pagar as contas, com quem procura ultrapassar em conjunto a perda recente da mãe, e tem como melhor amigo um urso de pelucho, Judy Garland, que é representado por Tónan Quito num fato de pelúcia gigante.

Tristeza e Alegria na Vida das Girafas tira com estrondo o prémio de filme mais corajoso de 2019 a O Falcão Manteiga de Amendoim, deixando-o inclusive a longa distância. Enquanto esse não tinha receio de pôr um jovem com Síndrome de Down a fugir de trusses durante grande parte do filme, Tristeza e Alegria na Vida das Girafas mete um urso gigante com síndrome de Tourette a praguejar constantemente junto a uma criança e a chamar-lhe puta. Aprende, Ted!

Girafa e Judy Garland vão assim faltar um dia à escola para irem numa aventura. Apesar de aparentemente esta ter como objectivo arranjar dinheiro para poderem pagar a tv cabo e verem o Discovery Channel para o resto da vida, na verdade é uma demanda pelas dores da vida. Não é por acaso que o urso se chama Judy Garland e que há no quarto de Girafa um desenho de O Feiticeiro de Oz. Assim, Girafa irá aprender sobre a vida e a morte, a mentira, a velhice, a alegria e a tristeza, sempre através de metáfora mais ou menos óbvias. Porque como disse Pandora Teles, os filmes para a família não têm que ser tontos e podem ter escritores russos a deambular por Lisboa.

Adaptado da peça de teatro homónima de Teatro Rodrigues, Tristeza e Alegria na Vida das Girafas é um texto incrível, que tem dois pontos caramelo nos monólogos de Miguel Guilherme e Gonçalo Waddington – o primeiro na pele de um velho de mal com os filhos, que amargura sobre a vida, a ingratidão e o amor; e o segundo na pele de um bancário que recorre às artimanhas dos bancos para reflectir sobre a honestidade e a traição.

O pior é que Tiago Guedes faz pouco pela adaptação cinematográfica deste texto. É certo que a banda-sonora de Manel Cruz ajuda muito, com a sua pop-do-it-yourself-de-quarto-de-dormir, assim como os genéricos à Jared Hess, mas parece forçar demasiadas vezes um estilo muito cinema-indie-loló (quer ser à força Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos ou o já referido O Falcão Manteiga de Amendoim, por exemplo), quando na verdade Tiago Guedes se limita a manter a câmara ligada e a treme-la muito, mesmo muito. Mas a prova da vitalidade do argumento de Tristeza e Alegria na Vida das Girafas é que o texto sobrevive a tudo isto e saca com grande distinção um inspirador McBacon.

Título: Tristeza e Alegria na Vida das Girafas
Realizador: Tiago Guedes
Ano: 2019

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