Só há bem pouco tempo é que a figura do Papa começou a ser representada com todas as suas complexidades humanas no cinema. Até a Habemus Papam – Temos Papa, de Nanni Moretti, a figura papal foi praticamente invisível no grande ecrã, limitando-se a uma figura idealizada de super-homem, não o herói da DC, mas a ideia nietzschiana do ubermensch e da transvaloração dos valores humanos.
Entretanto também já houve The Young Pope, a série de Paolo Sorrentino sobre o primeiro Papa norte-americano da História, e este passou a ser visto à escala humana. Basicamente foi aquilo que Martin Scorsese fez com A Última Tentação de Cristo, quando deu a mesma profundidade existencial humana a Jesus. Tudo isso preparou o terreno para que agora chegue Dois Papas, mais uma produção Netflix a encerrar 2019 em grande, com quatro títulos de peso.
Se calhar não damos a atenção devida a este momento incrível da História que vivemos, em que temos dois Papas vivos em simultâneo – depois de Bento XVI renunciar, num acto praticamente inédito, Francisco assumiu o lugar de sumo-pontífice da igreja católica. E já não bastava termos dois Papas vivos, como não podiam ser mais diferentes um do outro: o primeiro é conservador e representa a facção mais estática da igreja; e o segundo é um reformador, que procura aproxima-la mais dos tempos de hoje.
Dois Papas procura captar tudo isto, desde o momento da morte de João Paulo II até à renúncia de Ratzinger e a escolha de Jorge Bergoglio. E fa-lo única e exclusivamente através dos dois homens, em demoradas conversas, onde se projecta todo o contexto político-social em que vivemos (e fala-s muitas vezes em paredes e em consensos), mas também o passado e o futuro da sociedade e da igreja (ou não fosse a primeira um reflexo da segunda; ou será que é o contrário?).
Apesar de toda a solenidade do protocolo, o realizador Fernando Meirelles diverte-se a colocar algumas pedrinhas na engrenagem, já que a maioria das pessoas não quer ouvir padres a falar de anjinhos e de Deus. Essas pedrinhas tanto servem para a identificação do espectador com aqueles homens (que são sempre representados à escala humana e não à escala divina, de líder mundial da Igreja), seja uma música dos Beatles, a final do Mundial de futebol ou mesmo o Rex, o Cão Policia. E, na melhor cena de todo o filme, Meirelles transforma todo o conclave que elegeu o Papa Bento XVI, com o seu protocolo rigoroso, num bailado pop ao som do Dancing Queen, dos ABBA – a quem as vestes coloridas dos cardeais não ficam mal.
Mas Dois Papas é sobretudo um filme de actores (e das enormes parecenças físicas de Anthony Hopkins e Jonathan Pryce) e de argumentista. Anthony McCarten pode não ter a verve de Aaron Sorkin (e que bem que ficava um walk with me naqueles walk and talk dos dois Papas pelo jardim da residência de verão papal), mas Dois Papas chega quase a ser uma comédia screwball, tal é a química entre ambos protagonistas.
Fernando Meirelles vai ainda buscar found footage sempre que tem oportunidade e recorre a um par de flashbacks para contextualizar uma ou outra bengala dramática, sempre sem desmanchar o arranjo principal. Era só escusado aquela imagem já nos créditos finais, com os Papas verdadeiros a encontrarem-se e a fazer cair por terra qualquer suspensão da descrença. Mas facilmente esquecemos esse percalço, perante um McBacon tão sólido, onde afiambrar o dente.
Título: The Two Popes
Realizador: Fernando Meirelles
Ano: 2019