Quando estreou, O Rei da Comédia foi um flop junto do público e da crítica, especialmente por causa daquela coisa tramada que são as expectativas. Afinal de contas, Martin Scorsese tinha acabado de fazer O Touro Enraivecido e ninguém estava à espera de uma comédia passivo-agressiva como esta. Entretanto, o tempo tem-se encarregado de vir repondo justiça junto do filme, que finalmente foi legitimado pelo Joker, de Todd Phillips, que é uma espécie de remake de O Rei da Comédia.
Antes de haver Quentin Tarantino era Scorsese que ocupava o lugar mais alto destinado a realizadores violentos e estilizados. Tudo graças a filmes como Os Cavaleiros do Asfalto e Taxi Driver. Além disso, um ano antes, um tal de John Hinckley Jr. alvejava o presidente Ronald Reagan, com o intuito de impressionar Jodie Foster, a então (muito) jovem estrela de Taxi Driver, o que tinha reacendido a eterna questão da influência nefasta da violência no cinema junto do público. Perante tudo isto, O Rei da Comédia surge quase em contramão. É certo que é um filme violento, mas é-o de forma dorida, subversiva entre linhas. Como o Joker, portanto.
Rupert Pupkin (Robert de Niro) é um aspirante a comediante de stand up, que vive obcecado em actuar no talk show de Jerry Langford (Jerry Lewis), uma celebridade imensa dentro e fora dos ecrãs. Rupert e Pupkin são os dois lados da mesma moeda: enquanto o primeiro vive obcecado pela fama, acreditando estar destinado a uma vida de glamour e reconhecimento (de tal forma que engendra na sua mente longos e complexos diálogos e cenas hipotéticas que, depois, já não consegue distinguir se são realidade ou imaginação), o segundo está cansado de tanta gente, groupies e atenção, na contradição de viver em solidão rodeado de tantas pessoas.
Se de Robert de Niro já esperamos sempre o melhor, Jerry Lewis mostrava aqui aos Estados Unidos que era mesmo um actor a sério, apesar de ter sempre visto como um actor menor de comédias pateta, em contraste com o respeito que continua a ter na Europa e em França em particular. É ele o contraponto perfeito ao anti-herói de De Niro, até num choque de gerações. Enquanto Lewis vinha ainda de uma certa tradição clássica de se fazer cinema em Hollywood, De Niro era um jovem maverick e actor de método, que ajudava a derrubar o sistema para instalar um novo.
Ver O Rei da Comédia é estar na cabeça de Robert Pupkin e das suas (des)ilusões, que vai construindo na sua mente. Scorsese não coloca limites entre realidade e fantasia e, por isso, assistir a O Rei da Comédia é estar sempre na dúvida se o que estamos a ver é verdade ou não. Por uma lado, torna o filme desconcertante, mas por outro torna-o menos realista. Esse é o ponto mais fraco do filme. Ou será o facto de Scorsese não resistir a mostrar o número de Rupert Pupkin na íntegra, depois dele passar o filme todo a tentar mostra-lo a Jerry Langford (e ao mundo)?
O Rei da Comédia é tanto uma alegoria sobre a fama e os efémeros 15 minutos de popularidade preconizados por Andy Warhol, como uma reflexão sobre os marginais e os freaks da sociedade, que tanto são vítimas de bullying pela própria comunidade, como são trucidados e aproveitados pela engrenagem do capitalismo em nome do entretenimento. O Rei da Comédia é a vingança de um daqueles heróis que veneramos pelas razões erradas. Como o próprio diz better to be king for a night than schmuck for a lifetime. Dizia de início que O Rei da Comédia já tinha sido legitimado, mas enganei-me. Ainda faltava este McRoyal Deluxe para o processo ficar finalmente concluído.
Título: The King of Comedy
Realizador: Martin Scorsese
Ano: 1982