| CRÍTICAS | Vício Intrínseco

Era mais ou menos unânime que os livros de Thomas Pynchon não eram adaptáveis ao cinema. Com as suas milhentas personagens e histórias paralelas, drogas e psicadelismo, Pynchon é um autor pós-modernista que parecia condenado a viver longe do grande ecrã, logo ele que tanto gosta da reclusão. No entanto, se alguém o conseguiria fazer (ou pelo menos teria crédito para tentar) seria Paul Thomas Anderson, que é uma espécie de Pynchon do cinema: um novo clássico e um realizador com especial atenção à palavra.

Pynchon não só aprovou a adaptação de Anderson, como consta que até tem um cameo no filme. No entanto, como o autor vive em reclusão desde sempre e não dá entrevistas, é impossível saber quem ele é. A especulação é muita: é um dos tipos na cantina do hospital psiquiátrico? é um dos dentistas do maligno consórcio Golden Fang? Ninguém sabe. Mas é um óptimo fait diver para manter entretidos os vários fãs de Pynchon e de Anderson.

No fundo, Vício Intrínseco pedia por todos os lados para ser adaptado ao cinema. Afinal de contas, é um neo-noir, que joga com todos os signos do género. No entanto, fa-lo através dos óculos de Thomas Pynchon, o que significa que é um noir drogado e psicandélico. Imaginem o Chinatown escrito pelo Hunter S. Thompson ou um Delírio em Las Vegas com o Humphrey Bogart e o Robert Mitchum. Vício Intrínseco é um gonzo noir e Paul Thomas Anderson até pede emprestado Benicio Del Toro ao filme de Terry Gilliam!

Estamos na Califórnia do início dos anos 70 e Joaquin Phoenix é um detective privado que anda sempre ganzado. Isso significa que o filme vai estar sempre mergulhado numa nuvem de psicotrópica, com um leque de personagens tão vasto, quanto marginal. São outros ganzados como ele (ou ainda mais), músicos de jams sessions, prostitutas, a Irmandade Ariana, os Panteras Negras, consórcios de dentistas cino-americanos, piratas, um magnata do imobiliário que descobriu a espiritualidade e, a contrastar isto tudo, um polícia quadradão (Josh Brolin), de cabelo à escovinha, que não podia gritar mais “abuso policial”. Isto é o The Beach Bum – A Vida Numa Boa, versão policial.

Phoenix vai então ver-se envolvido numa trama que envolve a sua ex-namorada (Katherine Waterston) e o desaparecimento do tal magnata do imobiliário (Eric Roberts), trazendo para a molhada todas as outras personagens mencionadas acima. Por vezes, pode parecer que não, mas é mesmo um film noir clássico. Há um narrador, que não é o protagonista, apesar de falar na primeira pessoa e que é Joanna Newsom (vénia!), a quem Paul Thomas Anderson já realizou em tempos um teledisco; há uma femme fatale, que é o verdadeiro móbil para a investigação de Phoenix; há muita obsessão sexual; um protagonista alienado e que é, na maioria das vezes, transformado em bode expiatório; e, claro, traição, falsas acusações e um final em aberto.

São várias as pontas soltas e, no final, não temos nem a certeza que se elas se atam. Aliás, nem sequer temos a certeza se elas pertencem ao mesmo novelo. Mas em Vício Intrínseco o que interessa a Paul Thomas Anderson (e a Thomas Pynchon) é a mecânica e a estrutura do género, desconstruída em várias camadas e subvertidas com humor, ganza, psicologia, cultura pop e erva. Ah, e não esquecer os charros, claro (mencionei os canhões e as brocas?). Se a coisa funciona melhor em livro? Sim, muito mais. Mesmo que Pynchon não seja para todos. Mas um filme de Paul Thomas Anderson é sempre bom, mas quando é mau (viram O Mentor?). E este McBacon é o mais descontraído título de Anderson desde Jogos de Prazer, o que pode indicar também muita coisa.

Título: Inherent Vice
Realizador: Paul Thomas Anderson
Ano: 2014

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