Este é um dos raros casos em que a tradução do título de um filme para português é melhor do que o original. O filme chama-se Little Joe, o que, fora do contexto, não só diz grande coisa, como não é nada apelativo. Em português chama-se A Flor da Felicidade, que é bem mais poético e que, quando posto em conjunto com o poster e o ar suspeito dos protagonistas, lha dá um ar de desesperança.
No fundo, o Little Joe e A Flor da Felicidade de ambos os títulos são exactamente a mesma coisa. Little Joe é o nome da flor que a cientista Emily (Alice Woodard) criou em laboratório, com um olfacto especial e mais apurado que é estimulante e torna as pessoas mais felizes. Daí serem as flores da felicidade, que a empresa quer comercializar.
Todos nós vimos A Lojinha dos Horrores e sabemos como uma flor pode ser assustadora. No entanto, a de A Flor da Felicidade não come pessoas, não mata nem tem a voz do Levi Stubbs, é bem mais subtil que isso. Como foi modificada geneticamente para ser estéril, a Little Joe – fofinha e muito carmesim – vai utilizar o seu pólen para infectar as pessoas, alterar os seus sentimentos e fazer com que a protejam.
É ao cinema de terror que a A Flor da Felicidade vai beber, se bem que, apesar de recorrer a vários signos do género, nunca utiliza os mais óbvios. Não existem criaturas, mortes e ameaças muito visíveis. A flor é mais uma presença do que uma ameaça física e, por isso, é Carpenter e o seu Veio do Outro Mundo, ou A Invasão dos Violadores, que nos vem à lembrança primeiro que tudo.
A realizadora Jessica Hausner utiliza isto para acabar por reflectir sobre as relações humanas. Afinal de contas, nunca temos mesmo a certeza se a ameaça da flor é mesmo real ou se não está tudo na cabeça das personagens. É, por isso, um filme também sobre a manipulação da informação, fake new e gaslighting. Se juntarmos a isso a ameaça dos vírus patogénicos, a máscaras faciais que os cientistas usam no laboratório e todas as questões de higienização das mãos, A Flor da Felicidade torna-se num filme mesmo do nosso tempo.
A Flor da Felicidade é ainda um filme muito formal e cínico, ou não fosse Jessica Hausner austríaca, se bem que ela tem ainda um extra em relação a compatriotas seus, como Haneke, Seidl ou Schleinzer: a utilização das cores berrantes na mise en scene. Isso aproxima-a de outro legado do cinema fantástico, o de Dario Argento e Mario Bava (e todo o giallo italiano). A Flor da Felicidade é um belo McRoyal Deluxe, tão inesperado quanto a ideia de se fazer um filme em que uma flor é uma ameaça. E ainda há de aparecer um maluquinho qualquer que o utilizará para dizer vêm como os GMO são maus?
Título: Little Joe
Realizador: Jessica Hausner
Ano: 2019