Depois do novo coronavírus ter vindo instaurar uma “nova normalidade”, alterando radicalmente a forma como trabalhamos, nos relacionamos e consumismo (incluindo cinema), Tenet foi visto como o Messias que viria salvar o Cinema. Afinal de contas, o épico de Cristopher Nolan foi a primeira produção de um grande estúdio a estrear em sala no pós-covid e veio para nos ensinar a ver de novo filmes. E, tendo em conta que todas as quintas continuam a estrear novos títulos no cinema aqui da cidade, é porque a coisa funcionou [fim do modo ironia].
Não deixa de ser curioso que, numa altura em que a nossa vida mudou significativamente, o filme que vem salvar isto tudo seja um que redefina o conceito de tempo. Tenet é um filme sobre time travelling, mas com uma interpretação ligeiramente diferente. É certo que aborda o paradoxo do avô, um dos mais batidos na sétima arte e modelado por Regresso ao Futuro (vénias encorpadas com saída à retaguarda), que diz que, se formos ao passado e matarmos o nosso avô, destruímo-nos porque nunca aconteceremos, mas propõe-no de uma nova forma: regressarmos atrás no tempo enquanto ele está a acontecer. Ou seja, muito ambicioso, mas nada que espante num realizador que, desde Memento, tem vindo a complicar cada vez mais a sua abordagem à linearidade temporal.
John David Washington, que nunca é nomeado além de um simples Protagonista (já lá vamos), é um agente especial da CIA que é introduzido a uma nova tecnologia secreta e é encarregue de salvar o mundo de um possível armagedão. Estamos a falar de munições invertidas, que recuam no tempo em vez de avançar, e que foram feitas no futuro e enviadas para trás. Ou seja, a explicação parece logo confusa. E é. Mas o primeiro desafio nem é esse, é antes o de engolir essa premissa. Ok, nós percebemos que, ao trocar a entropia dos objectos, muda a linearidade temporal; mas radiação invertida, a sério?
Depois de nos habituarmos à ideia, Tenet encarrila até muito rapidamente. Com aquele estilo que Nolan tem vindo a aprimorar, muito clean e elegante, Tenet é o filme de James Bond do Roger Moore que nunca foi feito. Há espiões em trânsito pelo mundo, em cenários incríveis ou em situações que, invariavelmente, exigem muito dinheiro gasto (corridas em catamarãs, passeios em lanchas e muitas paisagens de fiordes noruegueses ou da Campânia italiana), e até um vilão super-bondesco, com sotaque russo carregado e tudo (Kenneth Branagh, cuja experiência em teatro e lhe dá uma solenidade shakespereana que cola bem). Até há Michael Caine (claro) e Robert Pattinson é uma espécie de M, mas em especialista em arranjar planos de fuga.
Depois, Tenet chega a meio e liga o complicador. As viagens no tempo entram em acção e o filme volta para trás, repetindo muitos momentos da primeira metade, mas agora em rewind (literalmente). Lembram-se de Primer? É assim, mas ainda mais confuso e com muuuuuitos diálogos, muuuuuito longos, em que as personagens explicam tintim por tintim o que se está a passar. E mesmo assim não percebemos. É um filme demasiado inteligente ou somos nós que somos demasiado burros? Nem um nem outro, é só Nolan armado ao pingarelho. Tenet desdobra-se e embrulha-se sobre si mesmo e, tal como Predestinação, leva o paradoxo do avô ao extremo. E, para que tudo bata certo, vai ter que ser necessário muito contorcionismo, algum dele bem pretensioso (como o facto do protagonista ser, simplesmente, o… protagonista, como se Nolan nos estivesse a dar uma aula de escrita de argumento e linearidade).
É aqui que Tenet começa a inflar, com perseguições nas estradas de Talinn de trás para a frente, situações de guerra (depois de Dunquerque, Nolan regressa ao war movie) e, claro, já toda a gente ouviu falar da cena em que ficou mais barato comprar um Boeing(!) e rebenta-lo(!!), do que usar CGI. Era tão melhor que Tenet fosse mais emotivo e menos cerebral. Mas não deixa de ser uma proposta interessante e, sim, é mesmo para se ver em cinema. Cristopher Nolan pode não ser o visionário maravilhoso que o seu exército de guerreiros da internet defende, mas – apesar de lhe colar bem – também não é o Stanley Kubrick dos Fast and the Furious, como lhe chama o Cinema Xunga. É mais aquele tipo que demora uma tarde inteira a confecionar um McBacon, nós comemo-lo e, apesar de não nos arrependermos, não queremos nunca mais repetir a dose. Mas iremos certamente provar o seu próximo prato.
Título: Tenet
Realizador: Cristopher Nolan
Ano: 2020