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*por Diogo Augusto
Há três coisas certas na vida: a morte, os impostos e Orson Welles escreveu o magnífico O Mundo a Seus Pés. Ou se calhar não. A morte chuta-se cada vez mais para a frente, os paraísos fiscais fazem gato-sapato das autoridades tributárias e afinal parece que foi o Herman Mankiewicz que escreveu O Mundo a Seus Pés.
É pelo menos disso que nos tenta convencer Mank, o novo filme do David Fincher para a Netflix. Num exercício estilístico que oscila entre o deslumbrante e o adolescente a brincar com o Windows Movie Maker, Fincher tenta não só dizer que Mankiewicz é o verdadeiro herói de O Mundo a Seus Pés, como também deixar bem claras as suas motivações, enquanto que pinta Welles como um vilão oportunista.
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Esta obsessão em pintar Welles ora como herói (no documentário, também produção Netflix, Amar-me-ão Quando Eu Morrer, por exemplo) ora como vilão só mostra como, passados 70 anos, ainda não conseguimos lidar saudavelmente com um filme que é uma espécie de pirâmide de Gizé: um colosso da antiguidade cuja complexidade é mais facilmente explicada por extraterrestres do que por qualquer esforço humano. E ganhou um mísero Óscar!
Gary Oldman representa um Mankiewicz estereotipado, muito simpático, bêbedo, mas com bom fundo, que escreve um guião como vingança de uma Hollywood avarenta. Contrasta com o Welles representado por um Tom Burke frio, oportunista e bully. É inteiramente possível (e provável) que nunca se venha a saber quem escreveu o quê em O Mundo a Seus Pés. Mas custa-me a aceitar que isso seja verdadeiramente importante.
A colaboração mais ou menos conflituosa entre Welles e Mankiewicz produziu um dos melhores filmes de sempre. E não deixa de ser irónico que Mank caia na velha trapaça Hollywodesca de contar uma história com heróis e vilões quando uma das principais qualidade do filme que deu origem a isto tudo é a de pintar o retrato de uma figura particularmente odiável através da sua humanidade e das suas contradições. Valem ao filme cenas como uma diatribe embriagada de Mankiewicz enquanto conta a história de Dom Quixote e se vai tornando cada vez mais claro que é a história de O Mundo a Seus Pés que está verdadeiramente a ser contada. Mank não é um mau filme. Longe disso. Mas às vezes não chega fazer as pessoas sentirem-se bem com elas próprias por terem percebido uma referência obscura ao enredo de O Mundo a Seus Pés. Aliás, às vezes só prejudica o McBacon.
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*por Pedro Soares
Existem três tipos de pessoas no mundo. As que viram O Mundo a Seus Pés e adoraram; as que nunca viram O Mundo a Seus Pés e que dizem que adoraram; e as que foram obrigadas a ver O Mundo a Seus Pés e que, por isso, não gostaram. O que não existe são pessoas que viram O Mundo a Seus Pés e, pura e simplesmente, não acharam nada de jeito.
O Mundo a Seus Pés é considerado por muitos – e por quase todas as listas que já se fizeram sobre o tema – como o melhor filme de sempre e foi o título que consolidou Orsen Welles como um prodígio que chegou, viu e venceu. Welles produziu, escreveu, realizou e protagonizou o filme com apenas 24 anos e, tal como Charles Foster Kane, ficou com o mundo a seus pés. O que veio no entanto a seguir são contas de outro rosário.
O que normalmente não se conta ou fica esquecido como mera nota de rodapé é que O Mundo a Seus Pés foi escrito a quatro mãos. Herman J. Mankiewicz desenvolveu a ideia inicial, lutou para ser creditado e isso não é um pormenor de somemos. Afinal de contas, o único Oscar que o filme venceu das nove nomeações que teve foi precisamente o de melhor argumento.
Mank, o regresso de David Fincher depois de um hiato de 6 anos, é o filme que recentra essa história sobre Herman Mankiewicz. Orson Welles é só mais um nome numa história com tanto name dropping que, às vezes, quase precisamos de uma cábula. Não é por acaso que ele é só um secundário no filme, interpretado por Tom Burke em um par de cenas. Mank é o filme de como Mankiewicz cogitou e escreveu o filme, enquanto se auto-destruía com o álcool e procurava acertar contas com Hollywood.
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David Fincher filma Mank como se fosse também um filme dos anos 40. O mesmo preto e branco, o som comprimido num só canal, uma reconstituição de época impecável… mas depois acrescenta dificilmente os cigarette burns no canto da imagem, para simular o final das bobines. Nisto Steven Soderbergh é muito mais caprichoso. Lembram-se como em O Bom Alemão ele foi repescar ao lixo câmaras, microfones e lentes antigas para fazer um noir como se fosse 1941?
Depois, David Fincher constrói (e filma) Mank como se fosse O Mundo a Seus Pés: planos semelhantes, cenas que piscam o olho ao filme original e, claro, uma narrativa não linear, cheia de flashbacks. Mank tem sido descrito por muito boa gente como uma carta de amor à Hollywood clássica, mas não é. É, precisamente, uma carta de amor a O Mundo a Seus Pés. O que, tendo em conta que o filme tenta chutar para canto Orson Welles e colocar os holofotes em Mankiewicz, não deixa de ser irónico.
Mank é então um filme (muito) palavroso, feito dos diálogos rápidos e editados de forma tensa, que facilitam tudo se soubermos do que eles estão a falar. Em Era Uma Vez em… Hollywood questionei-me acerca do mesmo: poderá o espectador que não conhece as referências apreciar na plenitude o filme? Tenho algumas dúvidas. Além disso, Fincher não é Aaron Sorkin – apesar de até tentar ensaiar um walk with me – e, apesar de Gary Oldman ser o actor ideal para isso, os diálogos não deixam de resvalar muitas vezes para o maçudo.
Não, Mank está longe de ser a obra-prima que muitos apregoam, elevando-o a salvador do cinema em 2020, depois da semi-desilusão de Tenet. É um bom filme, na linha do que Fincher já tinha feito com Zodíaco ou a série House of Cards, mas falta-lhe um clique para o conectar com o espectador e leva-lo a O Mundo a Seus Pés num comboio-fantasma. Vale todas as migalhas do McChicken, mas se nunca viram o clássico de Orson Welles, então comecem antes por aí.
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Título: Mank
Realizador: David Fincher
Ano: 2020