| CRÍTICAS | Dois

Nunca se falou realmente de um cinema de terror espanhol, mas a verdade é que teria sido mais do que merecido legitimar-se essa cena. Seja na forma como começou a exportar realizadores para Hollywood (de Guillermo Del Toro a Alejandro Amenábar, por exemplo), seja como, de quando em vez, nos atira uma bomba fragmentária que deixa lastro no género. Só assim de repente, lembro-me de [Rec], filme que redefiniu o found footage pela enésima vez, e Enterrado, proposta arrojada de um actor só que não se limitava a ser um simples gimmick.

Dois, que encontramos agora na Netflix, é mais uma proposta original que se inscreve na tradição deste último. Ele conta a história de um homem (Pablo Derqui) e uma mulher (Marina Gatell), que não se conhecem de lado nenhum, que certo dia acordam numa cama… cosidos um ao outro(!). Sim, Dois é uma versão mais aceitável de A Centopeia Humana.

Mas cosidos como?, perguntam vocês. E esse é o primeiro grande problema de Dois. É que Pablo Derqui e Marina Gatell estão cosidos por aquele tubo de carne que temos no dorso. Qual tubo de carne? Exacto. Pelos vistos, a realizadora Mar Targarona decidiu fazer uma abordagem freestyle à anatomia humana, até para lhe permitir que as suas personagens se movimentem um bocadinho mais à vontade (e que tenham sexo(!) – a sério?). Ou seja, todo o irrealismo da situação só serve para tornar ainda mais inverosímil a falta de lógica da proposta.

Dois estranhos acordam então cosidos um ao outro, num quarto aleatório. As primeiras suspeitas recaem sobre o outro e os diálogos sucedem-se por entre acusações e possibilidades mais ou menos fantasiosas. Mas depois começam a surgir capacidades de dedução acima da média, que fazem qualquer Sherlock Holmes corar de vergonha. O quê? Há dois quadros iguais na parede? Só pode ser então o marido de Marina Gatell, que adora o número dois(!). Mesmo assim, o acreditarem que foram raptados e cosidos pelo marido dela e que estão a ser observados por ele, não impede que… façam sexo(!). A sério?

Depois há mais decisões duvidosas, muita dedução forçada até ao limite (Estamos a ser observados, diz ele. O quê? Isso só pode significar que estás habituado a montar câmaras para filmar quando tens sexo com mulheres casadas e chantagea-las. Hum, a sério?) e, eis o plot twist que vem explicar o inexplicável. Mais decisões duvidosas, operações efectuadas a sangue frio, muita dedicação de vão de escada e um final que faz tanto sentido quanto comer sopa com um garfo. Dois é um Hamburga de Choco que nos faz ter saudades de A Centopeia Humana.

Título: Dos
Realizador: Mar Targarona
Ano: 2021

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