De quando em vez, os realizadores escrevem as suas próprias cartas de amor ao próprio cinema, como que a agradecer o que este lhes deu em troca. Talvez a mais sentida seja a de Cinema Paraíso, mas existem para praticamente todos os gostos, como a mais divertida dos irmãos Coen (olá Salve, César!) ou a mais… livre, de Quentin Tarantino (olá Era Uma Vez em… Hollywood). No entanto, quando essa carta é escrita por Steven Spielberg, o nome maior do cinema popular, criador do blockbuster moderno e rei do cinema com o coração no sítio certo, não há como ficar indiferente.
Os Fabelmans, que é a história de uma família de classe média judia norte-americana, especialmente a partir do ponto de vista do filho do casal, Sammy (Gabriel LaBelle), é uma espécie de dramatização biográfica da própria vida de Steven Spielberg. Com mais ou menos liberdade criativa (isso não importa sequer para o caso), Os Fabelmans conta, primeiro, como o cinema maravilhou, salvou muitas vezes e moldou a vida do jovem Sammy durante a sua adolescência; e conta de seguida as dinâmicas familiares daquela família, especialmente tendo como ponto de chegada o divórcio dos pais (Paul Dano e Michelle Williams).
No fundo, Steven Spielberg nunca fez outra coisa que não fosse homenagear o cinema clássico de Hollywood e todo aquele com que cresceu. Desde as matinés aventureiras de Errol Flynn encarnadas no famoso arqueólogo Indiana Jones até ao mais recente remake de West Side Story, um dos exemplos maiores desse género tão norte-americano que é o musical. A diferença entre os seus filmes alternam antes entre os mais lúdicos e os mais sérios. E é aqui que Os Fabelmans marca a diferença. É que, pela primeira vez, Spielberg combina estas duas facetas. Por um lado, o escapismo do cinema, com uma série de referências e homenagens mais ou menos directas; e, por outro, o drama familiar, explorando como nunca a fragmentação do núcleo familiar, que foi sempre um dos seus temas principais.
Sendo um filme biográfico, percebemos então porque esse é um dos seus tópicos recorrentes. E também percebemos como Spielberg ficou maravilhado com aquelas imagens de luz em movimento a primeira vez que foi ao cinema, ver O Maior Espectáculo do Mundo, levando-o a pegar na câmara de filmar desde logo e começasse a fazer os seus próprios filmes com a ajuda dos escuteiros. Há westerns, filmes de guerra e muitos home movies, que Spielberg recria como se fosse um jovens a descobrir como se faz filmes, mas nos quais não deixamos de ver alguns planos que reconhecemos do seu corpo de obra. Os Fabelmans é assim um jogo de espelhos.
E depois há o momento-charneira do filme (e provavelmente a grande sequência de Os Fabelmans), em que Sammy tem uma revelação a partir do material que filmou. É o momento Blow Up – História de um Fotógrafo do filme e é a segunda de três revelações que Sammy vai ter. A primeira é o acidente de comboio de O Maior Espectáculo do Mundo, a segunda é esta cena e a terceira há de ser o vídeo que filma e edita para a escola e que lhe permitirá arrumar de vez as divergências que tem com o bully da escola (Sam Rechner).
Os Fabelmans é um coming of age que explora ainda as outras facetas (e temas) que nos habituámos a ver, de forma directa ou indirecta, no cinema de Spielberg, como é o caso da religião e do seu passado judeu (com uma cena com Chloe East que também fica na memória, mas pelo humor da situação). No entanto, é na relação familiar e na dinâmica com os pais, entre eles e com o tio emprestado (o irritante Seth Rogen) que o filme depois se desenrola e se torna mais sério. E é aqui que brilha Michelle Williams, quase numa variação de Uma Mulher Sob Influência de Cassavetes, na dicotomia entre o coração de artista da mãe e o espírito de cientista do pai – e não é isso também o cinema, a única arte industrial do nosso mundo? Quem viu Michelle Williams em Dawson’s Creek adivinharia que iríamos estar aqui a torcer pela sua nomeação/vitória ao Oscar?
Os Fabelmans é o melhor filme de Steven Spielberg desde… sei lá, As Aventuras de Tintin ou o Munique provavelmente. Mas isso não significa que seja um trabalho perfeito. No entanto, compensa as suas falhas com o factor nostalgia. E, no fim, tem um momento de génio ao convocar o próprio John Ford, numa escolha de casting tão surpreendente quanto acertada (que se lixem os spoilers, é o David Lynch!), colocando-o a dar conselhos de realização ao jovem Spielberg, perdão, ao jovem Sammy. E, num último plano genial, Spielberg quebra a quarta barreira sem sequer se dirigir directamente a nós, espectadores. De tirar o chapéu, até porque é má educação estar a comer o McRoyal Deluxe com a boina na cabeça.
Título: The Fabelmans
Realizador: Steven Spielberg
Ano: 2022