Saint Omer é a primeira ficção de Alice Diop, mas encontramos nela todo um lastro de uma carreira feita no documentário. É que o filme, baseado no caso real do julgamento de uma mulher, emigrante africana em França, que deixou o bebé numa praia para morrer afogado, recorre às actas reais registadas no tribunal para construir o argumento, filmando esse court room drama quase como se fosse um docudrama: planos fixos, muito demorados e uma dinâmica quase de cabeças falantes.
No entanto, esta descrição pode ser muito injusta para Saint Omer, já que é demasiado redutora. É que, se o filme na forma parece muito simples, é nas entrelinhas que está toda a matéria e substância do filme de Alice Diop. Principalmente no que não é dito e no que não é mostrado. Ao contrário dos filmes de tribunal, em que uma metade procura convencer a outra metade da culpa do acusado e vice-versa, Saint Omer não quer provar a inocência de ninguém. Os factos estão mais do que comprovados e a ré não o nega. Aqui, o que interessa é o porquê. Por que fez aquela mulher aquilo? Ela própria não sabe e, logo no início, afirma que espera que o julgamento o possa explicar também.
São várias as razões possíveis. Nenhuma delas é-mos apresentada como uma causa possível, mas sim como parte de um conjunto de situações que levou aquele episódio. A saúde mental, claro, é a principal. Há também a questão da identidade e de pertença, por causa das raízes africanas daquela mulher (interpretada por uma intensa Guslagie Malanda), que a mãe proibiu de falar wolof e que, ao visitar o Dakar natal, acabou por ser vítima de bullying por parte da família, por ser uma assimilada. Há os traumas de infância, com uma educação rígida e inflexível, que depois se projectam numa relação esquisita com um homem branco e mais velho. E há, claro, todo o stress psicológico da gravidez, numa situação e deterioração da saúde mental.
No entanto, mais importante que isso é o que Alice Diop deixa nas entrelinhas. Há uma cena determinante, logo a abrir o filme, em que Rama (Kayije Kagame), a escritora que vai assistir ao julgamento (assim como a própria Diop também foi assistir a julgamento do caos real que inspira Saint Omer), dá uma aula na universidade em que fala de como as purgas legais francesas – situações de humilhação no pós-guerra francês, em que milhares de mulheres, acusadas de colaboracionismo com os nazis (muitas delas falsas e outras tantas que, viúvas dos maridos que perderam na guerra, tiveram que encontrar forma de subsistir como podiam), tiveram os seus cabelos rapados em praça pública – enformaram o cinema de Margarite Duras. Também os flashbacks rápidos da infância de Rama nos dizem muito, quase tanto quanto o Little Blue Girl, da Nina Simona, que toca quase integralmente já perto do final.
Rama, que é a personagem principal deste filme, vai desenvolver uma estranha obsessão com aquela mulher e todo o caso, já que encontra nele um espelho da sua própria vida. E o que vê no reflexo assusta-a. Rama também está grávida (se bem que isso nunca é nomeado directamente, provando mais uma vez que Alice Diop é muito boa em dizer o não dito), tem um trauma com a mãe não resolvido que nunca nos é explicado e as raízes africanas também têm um peso determinante. Por tudo isso, Saint Omer é um filme bastante interessante, se bem que a sua marcha lenta e os longos momentos descritivos em tribunal nada têm a ver com um Doze Homens em Fúria ou um J’Accuse – O Oficial e o Espião. É bom de outra forma, na forma de um McChicken.
Título: Saint Omer
Realizador: Alice Diop
Ano: 2022
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