| CRÍTICAS | Rebecca

Daphne du Maurier está para Alfred Hitchcock assim como Agustina Bessa-Luís está para Manoel de Oliveira. Por isso, quando se fala das adaptações ao cinema da sua obra-prima, Rebecca, fala-se invariavelmente da versão do mestre do suspense, de 1940. A decisão de Ben Wheatley, um dos grandes nomes do cinema inglês de terror da actualidade, em refazer Rebecca para um serviço de streaming foi assim, no mínimo, corajosa. Como se faz um remake de um filme que é quase perfeito?

Rebecca, o livro de du Maurier, é um clássico do horror gótico que Alfred Hitchcock adaptou ao cinema utilizando os códigos do film noir. Essa é a principal diferença desta nova versão de Rebecca para o século XXI: Ben Wheatley recusou o preto e branco e as sombras do gótico e do noir e optou antes por uma versão estilizada do filme de época, circa anos 1930, todo muito luminoso e bonito. O primeiro acto, ambientado na veraneante Monte Carlo, até quase que podia ser um side-plot do Chama-me Pelo Teu Nome. Depois vem o thriller.

Rebecca é a história de Lily James, a narradora da história que nunca é apresentada pelo nome próprio, uma jovem ingénua que conhece Max de Winter (Armie Hammer), o ricaço que é proprietário de Manderley – uma mansão monstruosa, que é também ponto de encontra da alta sociedade londrina – e que acaba de ficar viúvo de Rebecca. Nunca vemos sequer uma fotografia desta, mas é ela que vai assombrar todo o filme e, claro, a vida de Lily James, por quem Max de Winter vai ficar caídinho e casar-se num instante. Todos lembram constantemente a nova senhora de Winter de como Rebecca era incrível e maravilhosa, bela e formosa, ameaçando constantemente a sua presença. Não admira que Lily James não tenha sequer nome próprio.

A inexistência de Rebecca ganha presença física no corpo de Mrs. Denvers (Kristin Scott Thomas), a chefe da criadagem da casa e devota da senhora de Winter original. De tal forma que mantém o seu antigo quarto intocável, com a camisa de noite ainda disposta sobre a cama e o pente no aparador cheio de cabelos. É uma obsessão doentia, que faz de Mrs. Denvers uma protagonista de um hagxploitation, os thrillers psicológicos que exploravam as mulheres de meia idade como vilãs ou anti-heroínas. A outra presença de Rebecca no filme faz-se através do anagrama do seu nome, um R todo cheio de rococós nas pontas, que nesta versão de Wheatley corrige um pormenor que me faz espécie no filme de Hitchcock. É que nessa versão de 1940, a caligrafia de Rebecca é raquítica e pouco graciosa, que nada tem a ver com essa ideia de perfeição que nos passam constantemente acerca daquela mulher.

A partir daí o filme ergue uma série de cortinas de fumo, que escondem vários segredos e esqueletos no armário. Rebecca não tem a subtileza e os entreditos que tem a obra original (repressão e inexperiência sexual, sobretudo) e procura explorar a ideia do sobrenatural, que está sempre à espreita e a ameaçar aparecer (uma das marcas do horror gótico), como os pesadelos surrealistas de Lily James. Parece uma tentativa desesperada para criar ambiente, o que não deveria ser necessário, pois é para isso que lá está o casarão de Manderley e a Mrs. Denvers. Mais aleatórios são algumas coisas que Ben Wheatley cria sem qualquer propósito aparente, como o sonambulismo de Max de Winter. Porquê?

Apesar do erro de casting que é Armie Hammer (demasiado novo para o papel, numa história em que a diferença de idades entre o casal é o um ponto fulcral nas suas identidades), não é por aí que Rebecca falha. O seu maior problema é o último acto, quando um navio atracado ao largo de Manderley vem trocar as voltas ao jogo e, afinal, o que parece não é e o que pensamos que já era ainda existe. Ben Wheatley troca-se todo e o final do filme surge apressado, confuso e escrito em cima do joelho, o que frustra todo o build up que é trabalhado ao longo da hora e meia anterior. De todo o corpo de obra que o realizador inglês tem vindo a erguer, Rebecca é o Cheeseburger menos interessante.

Título: Rebecca
Realizador: Ben Wheatley
Ano: 2020

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