| CRÍTICAS | Ainda Estou Aqui

Depois de Ice Merchants, em 2023, volta-se a ouvir falar português nos Oscares deste ano, cortesia de Ainda Estou Aqui, do brasileiro Walter Salles, e da nomeação de Fernanda Torres para melhor actriz. Pode ser a oportunidade perfeita para a actriz vingar a mãe, que em 1999 também esteve nomeada (e também num filme de Salles, Central do Brasil, aquele que catapultou a cinematografia brasileira para a internacionalização), mas acabou por perder a estatueta para Gwyneth Paltrow.

Mas nem sequer era preciso esse reconhecimento internacional para Ainda Estou Aqui ser pertinente. Numa altura em que o mundo continua a sua trajectória descendente em direcção às trevas, com a ascensão da extrema-direita, Walter Salles decide contar a história verídica Rubens Paiva (aqui interpretado por Selton Mello), que desapareceu para sempre às mãos da ditadura militar brasileira. A sua esposa (que aqui é Fernanda Torres) nunca desistiu de lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado na sua morte, algo que só viria a acontecer 40 anos(!) depois, provando que a memória importa.

Ainda Estou Aqui conta então a historia dos Paiva, uma família privilegiada, mas com consciência de classe e comprometida com os valores humanistas. Com cinco filhos e uma senhora lá de casa, viviam numa zona rica do Rio de Janeiro. O pai, ex-deputado federal, era engenheiro civil, mas manteve sempre contacto com os exilados, ajudando no que podia, ele que também havia fugido para a Europa após o golpe de 64. Por isso, a primeira metade (e melhor) de Ainda Estou Aqui é um retrato do quotidiano feliz de uma típica família da classe média-alta brasileira no final dos anos 60, com muita praia, tropicalismo na banda-sonora e algumas âncoras culturais bem definidas para nos situarmos bem no tempo.

Depois, a normalidade é abalada. A campainha toca, vários homens entram em casa e levam, primeiro, Rubens Paiva para interrogatório e, depois, a mãe e uma das filhas. É um verdadeiro home invasion movie, que irá fazer as delícias de Michael Haneke. É que, antes de Fernanda Torres e a filha serem levadas também, aqueles homens à paisana permanecem em sua casa durante 24 horas, sem explicações, apenas vigiando e esperando. É uma invasão da privacidade brutal e a ausência de qualquer explicação torna-os tão amorais (e, consequentemente, perturbadores) quanto os invasores de Brincadeiras Perigosas.

Na segunda metade, Fernanda Torres reclama então para si o filme. Recusando aquele poema mal atribuído a Brecht que toda a gente partilha na internet, Fernanda Torres importa-se quando eles vêm buscar o marido e não descansa até ver o Governo assumir a responsabilidade como num verdadeiro Estado de direito. Ao mesmo tempo, nunca perde a sua posição de força, mantendo a família unida mesmo quando a situação económica começa a descarrilar e os sonhos de família desvanecem-se por entre os dedos. É uma mãe coragem, lutando igualmente no privado para não ir nunca abaixo.

Surgiram algumas críticas a Ainda Estou Aqui pelo seu retrato perfeito da família Paiva, onde ninguém tem defeitos ou falhas. Mas é que Ainda Estou Aqui é um filme que leva ao extremo a idealização do Bem contra o Mal e, por isso, as barricadas estão muito bem definidas, não havendo lugar para os espaços cinza. É por isso que a empregada, que é a única personagem racializada de todo o filme, é apenas uma extensão da família e, depois, quando a situação económica aperta, simplesmente desaparece. É uma reflexão para outro filme.

Walter Salles, mesmo com todos os clichés (incluindo umas cenas familiares em super 8, que parecem saídas de uma publicidade genérica qualquer), sente-se mais à vontade na primeira metade de Ainda Estou Aqui. Na segunda parte, quando é necessário mergulhar no psicológico, o realizador já não tem propriamente unhas para essa guitarra, mas felizmente tem uma Fernanda Torres ao dispor, que agarra no filme com tudo o que tem para dar. E, por isso, quase nem nos importamos com o epílogo de Ainda Estou Aqui, com a própria mãe Fernanda Montenegro a fazer de Fernanda Torres velha, que é tão desnecessário que pode ser facilmente entendido como aproveitador. Vamos então ver se a actriz consegue então juntar o Oscar ao Globo de Ouro e ao McBacon que já conquistou.

Título: Ainda Estou Aqui
Realizador: Walter Salles
Ano: 2024

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