| CRÍTICAS | Pecadores

Depois de Creed – O Legado de Rocky e dos primeros Panteras Negras, o realizador Ryan Coogler continua a construir o seu corpo de obra a partir da herança afro-americana e a partir de uma certa ideia de reparação histórica. Esses dois temas ganham agora (ainda) mais profundidade em Pecadores, com Coogler a deixar finalmente para trás os franchises e a experimentar material original.

O material que Coogler utiliza para moldar Pecadores é o blues, a maior manifestação cultural estritamente afro-americana. Por isso, o filme é ambientado no sul segregado dos Estados Unidos, ali algures após a Primeira Guerra Mundial. É que os gémeos Smoke e Stack (perceberam?, Smoke…stack…), ambos interpretados por Michael B. Jordan, serviram nessa guerra e agora, após um breve período a trabalharem para Al Capone em Chicago, estão de regresso ao Mississipi com o bolso cheio de notas. O plano então é montar uma juke joint, aquelas espeluncas em que se bebia, dançava e se ouvia blues, e começar uma vida nova de empreendedores.

Os gémeos vão então recrutar uma série de amigos para os ajudarem na noite de abertura da espelunca, começando pelo primo Sammie (Miles Caton), que toca guitarra nas horas e tem um vozeirão tal que, na cena pós-créditos que serve de prólogo ao filme 50 anos depois dos seus eventos, acaba por ser interpretado pelo próprio Buddy Guy, o último grande bluesman vivo (88 anos e a contar). Depois chamam um casal de chineses para ajudar no bar, uma amiga versada em vudu para cozinhar ou um calmeirão para fazer porta.

A primeira metade de Pecadores passa-se assim, a acompanharmos os dois manos pelos vilarejos locais, a fazerem negócio, a recrutarem amigos e a resolverem problemas (que podem ou não envolver a força ou algumas ameaças com armas de fogo – ou ambos). Ryan Coogler não tem problemas em se demorar nesta parte, até porque isso permite-nos mergulhar nesse universo muito específico, à medida que dá tempo para que todos os secundários tenham espaço para desenvolverem minimamente as suas motivações e não sejam adereços ou parte de um mero herói colectivo.

Depois juntam-se no antigo matadouro que compraram a um ex-membro do Ku Kux Klan (este é um pormenor importante para o final de Pecadores), a porta abre-se e começa um novo filme. Logo no início, Coogler explica-nos que a música tem o poder de convocar espíritos e de criar conexões com espíritos e demónios que não pertencem à nossa realidade, dando o exemplo dos griots da África Ocidental ou dos filis irlandeses (isso também será outro pormenor importante para o final de Pecadores). E, claro, dos próprios bluemans, que sempre tiveram uma relação próxima com o próprio Belzebu. Afinal de contas, o próprio pai do blues vendeu a alma ao Diabo numa encruzilhada para tocar como nenhum outro homem antes o fizera. Nunca o epíteto de música do demo fez tanto sentido ao blues.

Há uma cena incrível em Pecadores, quando Sammie está no auge da sua performance, em que o concerto de blues convoca espíritos do passado e do futuro, projectando-se em rockers de guitarra eléctrica, anciões tocadores de kora, dançarinas kabuki e bailarinas contemporânea. É uma festa que nos faz desejar estar lá também, filmada num longo travelling musical, que poderia muito bem ser o Babylon caso tivesse sido filmado pelo Baz Luhrmann. Essa é uma cena-charneira, que abre a porta para a segunda parte do filme.

Eis então que batem à porta três músicos brancos de country e bluegrass, que também se querem divertir. Os anfitriões pressentem qualquer coisa e não os convidam para entrar. Óptima decisão, porque aqueles três são vampiros demoníacos, atraídos pela música, sedentos de sangue e morte. De repente, aquela cena torna-se numa metáfora para todo o racismo estrutural norte-americano, com os afro-americanos a construírem um espaço seguro que é ameaçado pelos brancos. Mas esperem lá, o quê? Vampiros? Como assim?

De repente, Pecadores transforma-se em Aberto Até de Madrugada, mas sem o sentido de humor e a ironia de Robert Rodriguez. Michael B. Jordan entra em modo action hero e até tem um primeiro prólogo só para ele, onde pode activar ir full-Rambo e dizimar um batalhão de KKK, num dos dois finais falsos do filme (que são todos dispensáveis, aliás, e só prolongam Pecadores para além do desejável). Ryan Coogler andou a ver demasiado Quentin Tarantino e cruza aqui Aberto Até de Madrugada com Django Libertado, experimentando ainda a justiça poética através do cinema de Sacanas Sem Lei.

Se há coisa de que não se pode acusar Pecadores é de falta de imaginação. O filme é uma viagem e raramente conseguimos antever o que vai acontecer a seguir. Há racismo estrutural, reparação histórica, folclore africano, vampiros, gore, bodycount elevado e blues, muito blues, numa mistura entre entretimento, série b e temas sérios. Claro que Coogler não consegue que tudo isto faça sempre sentido, mas ao menos não nos aborrecemos. E se o filme de zumbis sempre serviu para reflectir sobre o estado das coisas actuais, porque não também o filme de vampiros histórico misturado de gótico sulista? Só esta descrição vale o McChicken.

Título: Sinners
Realizador: Ryan Coogler
Ano: 2025

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