| CRÍTICAS | Era Uma Vez… em Hollywood

A cineflia sempre foi o combustível do cinema de Quentin Tarantino, se bem que muitas vezes vemos isso ser chamado de nerdice, tendo em conta que a maior parte das suas referências vem da série b ou de subgéneros mais ou menos mal vistos na indústria. No entanto, em Era Uma Vez… Em Hollywood Tarantino leva isso mais à frente e a sua cinefilia torna-se no próprio filme, a matéria de que este é feito. É um gesto pós-modernista no seu todo, que mistura tudo e mais alguma coisa numa composição hiper-real.

Depois da justiça poética de Sacanas sem Lei, em que Tarantino utilizava o cinema para ajustar contas com o passado (e com os nazis em particular), Era Uma Vez… em Hollywood volta a fazer o mesmo, mas com Hollywood e toda a contra-cultura norte-americana. O ano é 1969, ano-charneira para a indústria cinematográfica norte-americana, mas também para toda a cultura pop em geral, marcando o fim do flower power. Mais ou menos como aquelas histórias da Marvel que imaginam um hipotético o que aconteceria se, Era Uma Vez… em Hollywood pergunta (e dá logo a seguir a resposta) o que teria acontecido se a Família de Charles Manson se tivesse enganado na porta da casa de Sharon Tate e Roman Polanski.

É, por isso, o filme mais pessoal de Tarantino, já que vai beber a um período muito específico da história do cinema. Ele, que sempre inunda os seus filmes com referências mais ou menos subtis, é aqui uma criança no recreio, cheio de piscadelas de olho mais ou menos claras e name dropping. Tarantino nunca foi tão longe como aqui, o que se reflecte em a) na duração do filme, três horas e tal, e os seus filmes continuam a aumentar desde a morte da sua editora de sempre, Sally Menke; e b) e em meta-referências como nunca havia feito antes, desde directas (como o epíteto a Sergio Corbucci, o segundo melhor realizador de western spaghettisı, que é totalmente acertado), a indirectas (a piada com Bruce Lee, cena que aparece parcialmente no trailer) e até a manipulação digital (incluindo uma cena adulterada de A Grade Evasão, com Brad Pitt em vez de Steve McQueen, ou Um Perigo em Cada Curva, com Margot Robbie digitalizada por cima de Sharon Tate). Pergunto-me se o filme fará sentido a quem não está familiarizado com os livros de história de Hollywood.

Em cada um dos seus filmes, Tarantino costuma prestar tributo a um (sub)género específico. Aqui volta a ser o western, se bem que, ao contrário de Os Oito Odiados, este deve mais ao western clássico e aos seriados televisivos do que ao spaghetti. Há, por isso, vários filmes dentro do filme, incluindo Bounty Law, uma série à Bonanza ou Rawhide, e The Fourteen Fists of McCluskey, um war movie com nazis muito semelhante a Seis Gloriosos Patifes. E por falar em Rawhide, a personagem de Leonardo DiCaprio não podia ser mais baseada em Clint Eastwood. DiCaprio é um actor de filmes de cáubois que não consegue descolar depois de uma série bem sucedida e que está prestes a ser convencido por um produtor manhoso (Al Pacino, sempre a gritar muito, o que cola bem com o cinema de Tarantino) a ir tentar umas certas cauboiadas em Itália.

Brad Pitt é a outra face da moeda. Ele é o duplo de DiCaprio e uma cópia do Chuck Norris de A Fúria do Dragão, com o mesmo penteado e óculos escuros. Aliás, Era Uma Vez… Em Hollywood é um filme do Chuck Norris, com Brad Pitt em modo invencível, que presta o maior tributo de sempre ao nosso ranger do Texas favorito e que parece que pouca gente está a perceber.

Depois há todos os elementos habituais dos filmes de Tarantino, desde os seus actores-fétiche (Kurt Russell, Michael Madsen, Zoe Bell…) até à banda-sonora, uma autêntica jukebox de swinging sixties, com alguns momentos mágicos. É o caso final com os Rolling Stones, pela primeira vez num filme do mestre, a cumprir uma dupla de sonho; a Mrs. Robinson a começar a dar na rádio no momento em que Brad Pitt manfia pela primeira vez Margaret Qualley, num momento jailbait; ou a versão do José Feliciano do California Dreamin’, a funcionar como requiem pelo Verão do Amor.

Mas nem tudo é perfeito em Era Uma Vez… em Hollywood. Para começar, a duração. Há aqui muita masturbação de Tarantino, que sempre se divertiu neste seu jogo de referências e de bricolage, mas que aqui, por vezes, parece que só ele é que está a brincar. Isso faz que pareça que se esqueceu que estava a fazer um filme em mais de um momento. Exemplos: a tal cena com Bruce Lee, que tem piada, mas que é uma anedota de 10 minutos; o filme dentro do filme que Leonardo DiCaprio está a filmar em modo vilão-hippie-de-bigode-à-Zapata, que preferíamos ver em spin-off, como os trailers fictícios do projecto Grindhouse; ou o final exploitation que escorrega demasiado na caricatura. Mas no final, quando o fade out faz entrar os créditos e sentimos no ar uma aura de vingança sobre a história – era isto que devia ter acontecido e não aquela parvoíce do Helter Skelter!! -, é impossível não gostar um bocadinho mais de Era Uma Vez… em Hollywood. Estamos habituados a superlativar os filmes de Tarantino, mas um McRoyal Deluxe não é nada mau, pois não?

Título: Once Upon a Time… in Hollywood
Realizador: Quentin Tarantino
Ano: 2019

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