O plano-sequência é uma das mais bonitas técnicas do cinema. Estes planos longos, sem cortes, quando bem feitos transportam logo o filme para novos níveis de galvanização. Quem não se lembra do travelling incrível da abertura de A Sede do Mal, todos os primeiros 15 minutos do uber-kitsch Os Olhos da Serpente ou a fuga de carro de Os Filhos do Homem? Entretanto, o plano-sequência tem levado a exercícios cada vez mais conceptuais, desde A Corda, de Hitchcock, até A Arca Russa ou o oscarizado Birdman, que trasnformam o filme num único plano-sequência. Que é o mesmo que faz agora Sam Mendes no novo 1917.
A grande novidade de 1917 é faze-lo dentro do war movie. Tal como o título indica, o filme remete para a Primeira Guerra Mundial, conflito que dizimou metade da Europa, mas que continua a ser muito pouco contado. O cinema então tem-lhe prestado mesmo muita pouca atenção, principalmente quando comparada com a Segunda Grande Guerra ou com outras mais pequenas, mas mais recentes, como o Vietname. Por isso, 1917 está para a Primeira Guerra Mundial assim como O Resgate do Soldado Ryan está para a segunda ou Platoon – Os Bravos do Pelotão para o Vietname: um filme sobre a desumanização do acto de guerrear.
1917 segue a missão quase suicida de dois soldados, George MacKay e Dean-Charles Chapman, que têm que atravessar a terra de ninguém, as linhas da frente e o lado do inimigo a pé para irem entregar uma mensagem a um outro pelotão, de forma a evitarem uma tragédia ainda maior. A câmara é então como se fosse um terceiro soldado, que tanto os acompanha de igual para igual – lembrando desde logo O Filho de Saul, até pela violência das imagens -, como flutua em seu redor pelo campo de batalha, num virtuosismo técnico irrepreensível.
Esse virtuosismo é a sua principal arma e, simultaneamente, o seu pior defeito. Porque se, por um lado, se lhe tiramos o chapéu pela forma incrível de como consegue manter duas horas num long-shot interrupto (sim, existem pequenos cortes, mas que são diluídos em truques de edição, como fez Hitchcock em A Corda), por outro não deixa de ser um gimmick. Às tantas, o plano-sequência já não está a acrescentar nada à narrativa e é o próprio filme que acontece em consequência desse trabalho de câmara.
No entanto, a primeira parte de 1917 é de uma crueldade brutal. Enquanto estamos nas trincheiras inglesas, por entre os corpos, a porcaria, a sujidade e as ratazanas, o desespero e a fatalidade tornam-se quase palpáveis. À medida que os soldados vão deixando os colegas para trás e o terreno se vai abrindo à sua frente, 1917 vai-se tornando num survivor movie muito parecido com Apocalypto, mas sem tanta correria, em que tudo vai acontecer aos dois jovens soldados. E quando digo tudo, é mesmo tudo. Incluindo cair-lhes um avião em cima(!).
A aproximar-se do fim 1917 começa a parecer o Corre Lola Corre e até a banda-sonora parece aproximar-se desse registo. Cada vez há amis correria e gente a desviar-se de tiros(!), mas quando estamos a perder o interesse pela coisa surge uma cena com um bebé que volta a trazer o filme para assentar os pés no solo. É o suficiente para vir ainda Benedict Cumberbatch dar um ar da sua graça na pele do padre que escreve o sermão que ninguém vai ouvir (ah, esperem, esse é o outro Mackenzie) e para terminar de nos servir o McBacon final.
Título: 1917
Realizador: Sam Mendes
Ano: 2019