Não existe género cinematográfico mais odiado no cinema do que o musical. Não existe outro tipo de filmes que crie a mesma repulsa do que um em que todos desatem a cantar sem razão aparente. Quem não gosta de filmes de terror é capaz de ver o Shining se estiver a dar na televisão, quem não gosta de comédias não se importará de ir ver o novo do Ben Stiller ao cinema para acompanhar a namorada e mesmo quem não gosta de cauboiadas (eu sei, é só um exemplo hipotético para efeitos dramáticos, porque ninguém não gosta de westerns) é capaz de deixar um spaghetti correr de fundo enquanto está a limpar a sala. Mas se estiver a dar o Chicago, o La La Land ou o Evita na televisão, quem não gosta de musicais muda de canal imediatamente, não há o mínimo de tolerância, ou se gosta ou se detesta. Por isso, quando alguém que não gosta de musicais nos diz que adorou o Annette, das duas uma: ou bateu com a cabeça ou Annette é mesmo algo de outro mundo (a resposta é a segunda, mas provavelmente não pelas razões que está a pensar; mas já lá vamos).
Annette é o sonho molhado de qualquer cinéfilo, pois marca o casamento entre Leos Carax, autor esdrúxulo e muito estimado da cinefilia mais militante, e os Sparks, banda que a cada disco constrói uma opereta genial e que há muitos anos que ameaçavam um salto até ao grande ecrã, com promessas de projectos nunca realizados com Jacques Tati e depois com Tim Burton. Carax também soube ler bem os sinais do tempo e convocou para estrelar o grande nome da actualidade, Adam Driver, o actor que tanto faz de Darth Vader jovem na máquina de fazer dinheiro da Disney como faz filmes independentes com gente como Jim Jarmusch. E Driver substitui Denis Lavant, o actor-fetiche de Carax, uma afronta que os seus fãs mais acérrimos não irão perdoar.
O filme começa em modo meta-referencial, com os Sparks a fazerem deles próprios num estúdio operado por Leos Carax, depois de uma mensagem em off alertar-nos que barulho não é permitido e respirar não vai ser tolerado. De repente, arrancam em cantiga síncrona, os actores Adam Drive, Marion Cotillard e Simon *Holowitz* Helberg entram em cena e um longo travelling acompanha-os em coreografia ensaiada. Em menos de 5 minutos fica o filme ganho e as próximas duas horas e tal passam num fininho.
Adam Driver e Marion Cotillard são então o casal do momento, que alimenta os tablóides e o star system internacional. Ele é um comediante provocador, com uma espécie de apetite pela destruição e uma queda pelo abismo, que faz lembrar Lenny Bruce; ela é uma soprano de voz angelical, que esgota recintos com o seu espectáculo de luz e amor. Diz a sabedoria popular que os opostos se atraem e Driver e Cotillard são a prova viva disso. O problema é que há todo o mundo da fama, do público e, consequentemente, das expectativas, que se vão intrometer e criar pressão.
Annette vai então beber directamente ao musical clássico e aquela noção de espectáculo total, que em tempos foi um pilar fundador de Hollywood (e cujo último grande título foi La La Land), mas também ao incontornável Os Chapéus-de-chuva de Cherburgo, pela forma como a música faz parte do filme. No entanto, isto é uma obra de Carax (e dos Sparks) e, como tal, não há propriamente as mesmas convenções narrativas do cinema tradicional. Ou seja, em Annette infiltra-se ainda o surrealismo onírico de David Lynch, o terror mais brega de Chucky – O Boneco Diabólico(!) e o melodrama passional de Douglas Sirk.
Exemplo disso é a forma como, a meio, o filme se altera e passa a ser sobre outra coisa. É precisamente na altura que entra em cena a personagem que dá título ao filme, Annette, e que é a filha que vai nascer de Driver e Cotillard. E isso até não teria nada de especial se, mais um vez, não estivéssemos a falar de Carax e dos Sparks. Se não querem saber do que estou a falar e preferem ser surpreendidos pelo filme, passem ao parágrafo seguinte; se não se importam com o spoiler, então preparem-se para a surpresa. É que Annette, a bebé, é uma marioneta. Porquê? A questão é mais e porque não?
Annette é um filme sobre o mundo do espectáculo e sobre como a pressão do público e as expectativas de ambas as partes influenciam os artistas, mas filtrado por uma ideia de espectáculo total de Carax, pelas músicas orquestrais dos Sparks e por meia dúzia de momentos incríveis, como o parto de Marion Cottilard ou o segundo intróito de Simon Helberg, o maestro. Nem sempre percebemos o que estamos a ver (ou melhor, por que o estamos a ver), mas tal como nos melhores filmes de Lynch temos sempre a sensação que temos que o ver porque é algo importante. E isso é o melhor elogio que se pode fazer a Annette. Isso ou o McRoyal Deluxe, ambos são óptimos elogios.
Título: Annette
Realizador: Leos Carax
Ano: 2021