| CRÍTICAS | Cordeiro

Em 2006 já tínhamos tido Black Sheep, filme que colocava esse fofinho animal que é a ovelha enquanto máquina de matar. O filme vinha da Nova Zelândia, país que, tal como os Açores têm mais vacas que cidadãos, também tem mais ovelhas que pessoas o que fazia todo o sentido. Agora, da calma e pacífica Islândia, com o selo da A24 (essa produtora que é, actualmente, um selo de qualidade do cinema fantástico) aterra entre nós Lamb, mais uma abordagem… alternativa, chamemos-lhe assim, a este animal.

Tendo em conta que o cordeiro sempre teve uma simbologia cristã, na sua raiz judaica, assim como o bode tem uma conotação com o demo, este animal torna-se assim no veículo perfeito para Lamb, mais um filme da A24, que adora explorar a dicotomia entre o Bem e o Mal (sempre de forma altamente estilizada, claro). De forma mais ou menos explícita, Lamb recorre a ambos. De um lado o pequeno cordeiro, sacrificados desde sempre na Páscoa como sinal até ao sacrifício pessoal em nome de todos os nossos pecados de Jesus, que se tornou ele próprio no Cordeiro de Deus; e do outro o bode, esse belzebu de cascos e cornos retorcidos, o original bode expiatório que os antigos Gregos já sacrificam para pagar pelos seus pecados.

[o resto deste texto pode conter spoilers]

Lamb conta-nos a história de um casal de islandeses (ela, Noomi Rapace (sueca de origem, na verdade), e ele, Hilmir Snær Guðnason) que vivem numa quinta isolada no meio do nada, naquela calma engolida pela vastidão da paisagem islandesa, com a sua produção ovina. O filme desenrola-se nesse mesmo ritmo, muito pausado e silencioso, até porque o realizador Valdimar Jóhannsson, na sua economia narrativa, só nos vai revelando certos factos que ajudam a definir a história de forma demorada. Por exemplo, logo de início notamos uma tristeza naquele casal, até porque um pormenor aparentemente insignificante mostra-nos que algo não está certo: na rádio passa música natalícia, mas nada na rotina daquela família denota celebração. Só no terceiro capítulo, numa ida ao cemitério, é que ficamos com a certeza daquilo que já suspeitávamos: há naqueles dois o lastro de uma filha falecida precocemente.

Mas o que faz a trama de Lamb girar acontece logo no início. Uma das ovelhas da quinta está prenhe e, quando pare, não é aquilo que estávamos à espera. Se Annette já nos tinha surpreendido este ano, ao dar-nos uma filha que era uma marioneta, então Lamb leva tudo ainda mais longe, e dá-nos uma criatura metade cordeiro, metade humano. Noomi Rapace e Hilmir Snær Guðnason parece não quererem saber e adoptam-na como sua filha, contra os protestos da mãe-ovelha, tomando-a como uma prenda da Natureza. No entanto, a mãe-Natureza não dá nada de mão beijada e, por cada oferta, exige um sacrifício. Afinal de contas, estamos a falar de cordeiros, não é?

Entretanto, há de surgir na história o irmão de Guðnason, que representa perigo para a estabilidade daquele núcleo familiar. Também não é claro ao início o que se passa, mas com o mesmo ritmo narrativo, Jóhannsson lá nos vai dando pistas sobre o que vai e pode acontecer. Nunca é claro e a interpretação é aberta a cada um de nós. Afinal de contas, aquela criatura meio-cordeiro, meio-homem pode ser uma metáfora à Natureza, à maternidade (sim, Mãe! é também uma referência incontornável) ou até mesmo ao adultério e às relações humanas. Mas tendo em conta que estamos a falar da A24, é mais uma vez a eterna luta entre o Bem e o Mal que ganha aqui predominância. Lamb é uma óptima proposta mais alternativa do que significativa, mas que pela coerência e solidez do seu projecto merece todo um McRoyal Deluxe.

Título: Lamb
Realizador: Valdimar Jóhannsson
Ano: 2021

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