| CRÍTICAS | Restos do Vento

Existem poucos costumes em Portugal mais parvos do que os caretos. A excepção deve ser, provavelmente, a praxe. As máscaras são espectaculares, mas aquela coisa de andarem a importunar as pessoas, ao abrigo da tradição (seja lá isso o que for), faz tanto sentido no século XXI como a fome. É como o Carnaval… no Carnaval ninguém leva a mal, diz a máxima, para desculpar tudo aquilo que possa ser inconveniente. E é precisamente numa Festa dos Rapazes, há 20 anos atrás (essa “tradição” em que os homens mascarados saem à rua para “chocalhar as mulheres”), que começa Restos do Vento.

Essa é uma tradição que serve de ritual de passagem e de coming of age e, por isso, tem sempre algo de traumático. No entanto, neste caso, este é um trauma que há de ficar marcado para sempre junto das pessoas daquela aldeia do Portugal real, que nunca é nomeada e que, por isso, podia ser qualquer uma no nosso país. 20 anos depois, aqueles jovens cresceram. Laureano (Albano Jerónimo), que naquela Festa dos Rapazes se recusou a importunar uma miúda e, por isso, foi espancado pelos restantes, tornou-se no tontinho da aldeia, que todos toleram com dificuldade, especialmente por causa dos cães que o seguem para todo o lado. A excepção é Judite (Isabel Abreu), a tal miúda que cresceu para se casar com um dos rapazes, o GNR da aldeia (João Pedro Vaz). E depois ainda há Samuel (Nuno Lopes), o industrial, e Vítor (Gonçalo Waddington), o empreendedor.

Restos do Vento é um Sleepers – Sentimento de Revolta à portuguesa. E Tiago Guedes regressa ao mesmo tema com que começou a carreira, em Coisa Ruim, num ano em que, curiosamente, o seu colega Frederico Serra fez o mesmo. Um mergulho no Portugal profundo, com todas as suas tradições e idiossincrasias, que com uma direcção diferente teria ido pelos caminhos do folk horror. Aliás, foi o que fez João Pedro Rodrigues com os caretos em O Ornitólogo, por exemplo.

Restos do Vento é um filme de comunidade, em que a aldeia é ela própria o herói colectivo da história. E se há coisa que Tiago Guedes domina é o storytelling, o que consegue aperfeiçoar aqui com grande controlo dos ritmos e dos timmings. Restos do Vento é um filme que vai crescendo, dando tempo e espaço para as suas personagens crescerem e respirarem, sem nunca se apressar ou tropeçar nos próprios pés – algo que sentíamos amiúde no anterior A Herdade. É um slow burner, que tem a vantagem de ter um leque de actores seguros de si, que ajudam a levar o filme para a frente.

Sabemos desde aquele prólogo inicial, há 20 anos atrás, que há um trauma no ar que precisa de redenção. No entanto, não esperamos que o filme se vá transformar numa verdadeira tragédia grega, que exige sangue para poder seguir em frente. E nem sequer é por lembrar Noite Escura, que citava directamente Eurípede, que este é um filme que poderia muito bem ter sido feito por João Canijo. É também pela sua portugalidade, num filme que sabe muito bem captar o genius loci daquele território que pode ser qualquer um em Portugal, com as festas da aldeia, o espírito de comunidade e o afastamento dos centros de decisão que fazem quase com que o filme seja um western, num território sem lei (ou com lei própria, para ser mais exacto). Restos de Vento é um belo filme, com um título demasiado telenovelesco, e o meu McRoyal Deluxe favorito na filmografia de Tiago Guedes desde Coisa Ruim.

Título: Restos do Vento
Realizador: Tiago Guedes
Ano: 2022

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